Na Coreia do Norte, são as mulheres que mandam no futebol

Acima do paralelo 38, há orgulho nacional no futebol feminino. Entre internatos, talento, o gosto especial de Kim, o orgulho e até doping, o sucesso da selecção norte-coreana é uma viagem alucinante.

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O jogo da primeira mão entre o Japão e a Coreia do Norte YASSER BAKHSH?
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A selecção feminina de futebol da Coreia do Norte está no nono lugar do ranking FIFA. E está a 90 minutos de ir aos Jogos Olímpicos. Em duas frases, estará captada a atenção de quem tenha o mínimo gosto por extravagâncias em fenómenos desportivo-culturais.

Há futebol na Coreia do Norte? Há lá futebol praticado por mulheres? E são assim tão talentosas? Podem sair do país para jogar contra outras selecções? Jogam nos melhores clubes do mundo? Os homens são, como em quase todos os países, os mais valorizados neste desporto? Sim. Sim. Sim. Sim. Não. Não.

Do que se sabe do regime político e social da Coreia do Norte, há poucas coisas que as mulheres possam fazer livremente – e menos ainda com supremacia em relação aos homens. Mas isso muda quando se trata de satisfazer um gosto particular de Kim Jong-un e um desígnio global do regime. Para fortuna das meninas e mulheres norte-coreanas que gostam de jogar futebol, o todo-poderoso ditador “gosta de bola” e de quem vença pelo país – por isso, gosta delas.

Nesta quarta-feira, o Japão-Coreia do Norte, em Tóquio, vai ditar qual dos países vai à prova feminina de futebol nos Jogos Olímpicos de Paris, depois do 0-0 na primeira mão em “casa” da Coreia – jogada na Arábia Saudita, bem longe de Pyongyang, claro está, porque os nipónicos se queixaram de ter poucos voos para Pyongyang​.

No futebol, como em muitas outras coisas, a Coreia do Norte traz uma total bizarria, no sentido em que não é suposto que uma selecção sem futebolistas nos melhores campeonatos do mundo seja assim tão talentosa.

Mas o que estamos a dizer? Será que o campeonato local norte-coreano é mau? Se calhar, não é. Ou talvez seja. Pouco se sabe. O que se sabe é que numa nação de preceitos profundamente patriarcais são as mulheres quem tomam conta do futebol feminino. E isso, com ou sem apuramento para Paris, já é uma história e tanto.

“Parecia que nunca se cansavam”

O futebol da Coreia do Norte é um relativo segredo. Não há transmissões para o estrangeiro e mesmo os sites informativos sobre resultados e competições são curtos ou incompletos. A talhe de foice, podemos dizer que um dos clubes de futebol mais famosos nesta nação ditatorial se chama 25 de Abril – e fiquemos por aqui na trivialidade luso-coreana.

Voltando à história, a Coreia do Norte foi até excluída do ranking FIFA por inactividade por altura da pandemia, tendo estado mais de três anos sem qualquer jogo. De repente, voltou.

Como jogaram e treinaram durante esse tempo? Ninguém sabe, mas alguma coisa terão feito, já que no retorno ao futebol continental levaram a prata nos jogos asiáticos, subindo rapidamente do zero para o top 10 – ainda assim, um ranking algo inusitado, já que não participa numa prova importante desde 2012, quando foi aos Jogos Olímpicos de Londres.

Neide Simões, internacional portuguesa, defrontou a Coreia do Norte na Algarve Cup, em 2014. E conta ao PÚBLICO o que se lembra dessa selecção. “Curiosamente, acho que a única vez que fui expulsa pela selecção foi nesse jogo. Lembro-me de que a Coreia do Norte era uma equipa bastante organizada, que jogava de pé para pé e gostava bastante de ter posse de bola”.

“Fisicamente não eram robustas, mas em termos de capacidade cardiovascular eram muito fortes. Parecia que nunca se cansavam”, recorda ainda. E alguém fica espantado por os preceitos tácticos rigorosos e a tremenda capacidade física sejam virtudes de quem se formou na Coreia do Norte?

Internatos estatais

Mas onde encontram jogadoras? Onde treinam? Jogam futebol a tempo inteiro? São bem pagas? Quão famosas são no seu país? Receamos que algumas destas perguntas continuem sem resposta. Mas não todas.

Thomas Gerstner, treinador alemão que se aventurou a comandar a selecção sub-20 da Coreia do Norte, contou à ABC que o futebol de formação é muito forte – e nem seria preciso dizê-lo, porque os resultados das selecções sub-17 e sub-20, ambas já campeãs do mundo, comprovam-no.

Mas como é que isso acontece? “Todos os jogadores das selecções nacionais estão no Centro Nacional de Treino (CNT) 24 horas por dia, sete dias por semana, e não jogam em clubes depois de terem sido seleccionados. São treinados seis dias por semana no CNT”, conta.

A troco de quê? De orgulho. “Não há pagamento para isso. Ficam alojados no CNT, recebem refeições completas e estão simplesmente orgulhosos de representar o seu país. São ensinados lá todos os dias e gostam de ser privilegiados”.

O recrutamento, ao contrário do que acontece no resto do mundo, não é feito através da vontade dos jovens ou dos seus pais: são organizações estatais que definem quem tem talento. E quem tem talento vai jogar futebol, queira ou não – tal como quem tem talento para o piano vai tocá-lo, queira ou não queira.

Os ditadores norte-coreanos sempre tiveram um gosto especial pelo desporto – em parte porque ajuda a dar uma melhor imagem do país, representando publicamente a virtude e a glória para dentro e para fora, mas também, no caso de Kim Jong-un, por gosto particular por futebol e basquetebol – que o digam o Manchester United, clube preferido do líder, e Dennis Rodman, estrela da NBA que criou uma excêntrica amizade com Kim.

Para sorte das jovens coreanas – e está por confirmar se se trata de sorte –, o ditador “gosta de bola”. E depois do título mundial sub-20, em 2006, as jogadoras terão sido mesmo premiadas com distinções governamentais de mérito.

Até porque o futebol feminino, ao contrário do masculino, consegue sobrepor-se ao vizinho do paralelo 38 – em 20 jogos com a Coreia do Sul, ganharam 16, conseguindo até goleadas ocasionais por seis ou sete golos. É música para os ouvidos de Kim.

Para as mulheres, o melhor

O jornalista James Montague chegou a fazer ao Guardian o seu relato, depois de uma visita ao país. Diz que a Coreia do Norte, vendo o sucesso das suas meninas, apostou mais no sector feminino do que no masculino. E enquanto os países ocidentais lutam para criar igualdade entre as duas vertentes, os coreanos já trilharam esse caminho no início do século – em rigor, se alguma desigualdade existia era até em favor do futebol feminino.

As meninas tinham as mesmas oportunidades, condições de treino, treinadores e equipamentos do que os homens, mas estavam até bem mais valorizadas a nível de desenvolvimento nos escalões jovens e de treino especializado nas escolas.

Carlos Gorito, brasileiro a trabalhar numa televisão sul-coreana, visitou o vizinho do Norte em 2018 e contou à Globo que “a selecção que inspira o povo não é a masculina”. “Para se ter uma noção, visitei uma escola com crianças na faixa de 13/14 anos. Quando a aula acabou, todos foram para o pátio. Enquanto os meninos ficaram a bater uma bolinha num espaço apertado, as meninas seguiram para um campo e fizeram um treino super organizado, com direito a treinador e tudo mais”.

Entre sucessos em competições asiáticas, Campeonatos do Mundo e até participações em Jogos Olímpicos, o talento das futebolistas coreanas sugere outro factor importante.

Diz-se que na Coreia do Norte os campeonatos são competitivos e equilibrados e com clubes suportados por sectores estatais – como o exército ou mesmo empresas. E, acima disso, o futebol no país tem três divisões masculinas e três femininas – também aí igualdade total, o que não explica tudo, mas já dá fortes pistas para explicar o nível das futebolistas.

Outro factor importante é a motivação. Quando se compete pela Coreia do Norte não se corre apenas pelo desporto, mas por uma vida melhor, já que uma conquista internacional lhes pode garantir uma casa oferecida pelo Governo.

E Carlos Gorito cita também um guia local que lhe explicou, em anonimato, que “investir na carreira desportiva na Coreia do Norte é muito vantajoso, já que o Governo abre algumas excepções visando o desenvolvimento de atletas que mostrem potencial”. “O desporto é uma das poucas maneiras de se conseguir viajar para fora do país, por exemplo”, disse ainda. Em 2014, por exemplo, as futebolistas até puderam visitar o Algarve para derrotarem Portugal.

O doping

No sucesso das coreanas haverá também uma motivação inerente ao medo. Dado o historial de castigos do regime norte-coreano a quem embaraça publicamente o país, não é difícil imaginar o que possa acontecer às jogadoras que venham a cair, nesta quarta-feira, aos pés do Japão, em Tóquio. Boa parte do mundo, quanto mais não seja por compaixão, estará a torcer pela Coreia do Norte neste play-off.

E também não será difícil adivinhar o que possa ter acontecido às cinco futebolistas norte-coreanas apanhadas por doping, que desapareceram depois de terem envergonhado internacionalmente o país.

E este é outro dos “pequenos” segredos adicionais que podem suportar, pelo menos em parte, este sucesso do país na modalidade – embora “segredo” seja uma expressão demasiado forte, porque não conseguiram esconder que no Mundial 2011 houve cinco jogadoras a falharem testes antidoping, motivo pelo qual a selecção foi multada e banida pela FIFA de tentar sequer a qualificação para o Mundial 2015.

O país justificou os resultados desses testes com originalidade, falando de tratamentos com um medicamento tradicional chinês usado para tratar as atletas que tinham sido atingidas por um raio num treino.

A explicação bizarra não só não “colou” para a FIFA como na altura até se falou de ter sido detectada uma substância tão incomum nas atletas que nem fazia parte dos regulamentos antidoping. Citando Neide Simões, portuguesa que falou ao PÚBLICO, “parecia que nunca se cansavam”. Faz sentido.

Para quem resistiu até aqui, uma notícia actualizada: já nesta quarta-feira, o jogo resultou numa derrota da Coreia do Norte, por 2-1. Já não há viagem a Paris.

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