Dois revolucionários, dois políticos e um curioso encontram-se no Largo do Carmo

Criámos um site com fotografias do local mais emblemático do 25 de Abril. Ajude-nos a identificar as pessoas e a contar as histórias de quem ali viveu as primeiras horas da liberdade.

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Da esquerda para a direita: João Oliveira da Silva, Salgueiro Maia, João Soares, Pedro Coelho e Carlos Beato Félix do Nascimento Esteves
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Não se fala do 25 de Abril sem se falar do Largo do Carmo. Foi no quartel da GNR aí situado que Marcello Caetano, à época presidente do Conselho de Ministros, se refugiou do poder popular com três ministros. Cá fora, a luta era comandada pelo capitão Salgueiro Maia, que, na fotografia de cima, aparece a fumar — algo “muito raro”, descreve Carlos Beato, o alferes que está de capacete e viria a ser presidente da Câmara de Grândola, “vila morena”, durante 12 anos.

A fotografia foi tirada por Félix do Nascimento Esteves ao início da tarde de 25 de Abril de 1974. Concretamente “depois de almoço”, assegura João Oliveira da Silva — o engravatado à esquerda que nesse dia fez uma pausa na participação na revolução para ir a casa tomar banho e almoçar. “Como se vê na fotografia, estava com um ar satisfeito. Foi de certeza o dia mais feliz da minha vida, parecia um sonho”, descreve ao P2 o hoje presidente do conselho administrativo da Fundação Medeiros e Almeida.

Os restantes retratados também não são desconhecidos: atrás de Salgueiro Maia está João Soares, antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e antigo ministro da Cultura, e, à sua esquerda, de cachecol, Pedro Coelho — um dos fundadores do PS, destacado opositor ao Estado Novo e antigo secretário de Estado da Emigração e, depois, das Pescas.

Foi permitido a Soares e a Coelho que transpusessem a barreira de soldados (visível no último plano da fotografia) porque andavam a distribuir o jornal vespertino República — que, nesse dia, pela primeira vez, não foi à censura (trazendo, aliás, esse dado estampado em rodapé na capa). “Pegamos nos jornais e fomos andando pela Rua da Trindade, nas traseiras, até ao Largo do Carmo, a distribuí-los”, recorda João Soares ao P2.

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Edição de 25 de Abril de 1974 do jornal República Arquivo digital Hemeroteca

Furada a barreira de soldados, dirigem-se a Salgueiro Maia, um então “ilustre desconhecido”. Diz-lhe João Soares que o “camarada Coelho” havia sido “candidato a deputado da oposição em 1973”, ao que Maia responde: “Ainda bem que vieram.” Apresentações feitas, Salgueiro Maia pede a Pedro Coelho que use o seu megafone para acalmar a multidão. “O Coelho é o primeiro a usar o megafone a pedido do Maia. Pediu às pessoas para que se aguentassem um bocado e os deixassem [ao Movimento das Forças Armadas (MFA)] trabalhar à vontade”, recorda João Soares.

Na fotografia, vê-se o preciso momento em que Maia passa o megafone a Pedro Coelho. Voltaria a emprestá-lo ao longo dessa tarde, mas desta vez a Francisco Sousa Tavares — a quem pediu que apelasse aos populares para ir “em desfile até ao Terreiro do Paço”, nas palavras de Soares.

“Para o ano é feriado!”

À direita, de capacete — “sempre de capacete”, recorda João Soares —, está Carlos Beato, um dos grandes protagonistas da Revolução. O capitão Carlos Beato era o comandante do 6.º Pelotão da Operação “Fim Regime”, que na madrugada do dia 25 de Abril saiu com Salgueiro Maia de Santarém em direcção à história. Aos 26 anos, tinha 25 homens sob as suas ordens. Segura uma espingarda G3 e, na perna esquerda, tem uma sacola onde traz “várias coisas”, como “latas de conserva”, revela ao P2. “Estivemos mais de 24 horas sem comer nada. O povo é que nos dava pão e cigarros, foi fantástico.” Ao telefone, relata alegremente o momento em que deu conta de que não estavam a fazer um golpe de Estado, mas uma revolução. Questionado pelo jornalista Adelino Gomes sobre quem estava do seu lado, Salgueiro Maia respondeu: “A Força Aérea, a Marinha, vários regimentos, estamos cada vez mais confortáveis. Ao que Beato logo completou: ‘E temos o povo, meu capitão, temos o povo!’”

Observando a fotografia, o “rapaz Beato” — assim o tratava Maia — explica que a “cortina” de militares que aparece ao fundo, tapando a entrada do quartel, servia como uma “espécie de tampão” para que as pessoas não entrassem lá e fizessem “ajustes de contas pelas próprias mãos”. “O povo estava a abarrotar o Largo do Carmo e não saía dali porque estava lá o presidente do conselho. Foram 48 anos de Portugal amordaçado”, justifica, recordando que tinham “ordens do MFA” para que “não houvesse sangue”.

A fotografia foi tirada durante as quatro horas — entre as 12h e as 16h — em que os militares estiveram no Largo do Carmo à espera da rendição de Caetano. “Quatro horas, naquele dia, eram 40 horas de um dia normal”, diz Beato. As aventuras vividas nessas longas “40 horas” no Largo do Carmo tiveram um final feliz — mas, como conta Pulido Valente, bastava a GNR ter cumprido as ordens de Caetano e acabava numa matança. “Ali ainda era 24 de Abril”, explica Beato.

João Soares conta que, a certa altura, avisou Salgueiro Maia de que era “preciso ir à PIDE”. E Maia, “com uma postura tranquila”, respondeu-lhe: “Tenham calma, rapazes, que agora temos de travar isto aqui”, como que dizendo, “já vamos tratar disso, agora temos de tratar da rendição do outro”. Uma resposta que muito “tranquilizou” o antigo ministro da Cultura.

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O mesmo momento com os cinco intervenientes, mas fotografado de outro ângulo Cortesia João Soares. Autor desconhecido

Oliveira da Silva lembra-se de que nessa altura, “mesmo no Carmo”, ainda “não era seguro” como ia acabar o dia. “Estavam a decorrer manobras nos bastidores e alguém do MFA estava a dizer para o Carmo que não nos prendessem, pois levavam com petardos mesmo”, revive.

“Tenho pena de não poder dizer que tive um papel activo. Fui mais um apaixonado, foi um momento único”, descreve feliz ao telefone. Conta que, às tantas, perguntou a um amigo que dia era. Responderam-lhe: “25 de Abril.” “Para o ano é feriado!”, vaticinou.

Perante umas portas que não se abriam, Salgueiro Maia tomou decisões mais drásticas: disparar. Enviou o pelotão de Carlos Beato para as águas furtadas da companhia de seguros Império, pedindo-lhe que de lá “fizesse umas rajadas de tiros de aviso”. “Era para ser só cinco ou dez minutos, mas estava tão tenso que fizemos fogo [durante] meia hora”, conta ao P2.

Os tiros, de “aviso”, não pretendiam acertar em ninguém — mas, conta Beato, furaram canalizações de água: o que acelerou a rendição. Cerca de trinta minutos depois de os militares abrirem fogo, abriram-se também os portões do Carmo — rendia-se Caetano. Caía, com estrondo, o regime.

Maia entrou e Caetano disse-lhe que se queria render a uma patente mais alta. O capitão, à época com 29 anos, acedeu ao pedido — e lá veio o general António Spínola, recebido em apoteose, “formalizar” o acto. Escoltados pela coluna militar de Santarém, seguem depois Caetano e o seu Governo para o posto de comando do MFA, na Pontinha.

Cai a noite, que consigo traz uma chuva molha-tolos. “Quarenta horas” depois, os militares podem, enfim, descansar. Reúnem-se e vão para o Colégio Militar. Jantam almôndegas com arroz branco — o resto é história.

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