Rocha e Raimundo, os simpáticos homens que provam estarmos longe do “fim da história”

Carregados de ideologia, da saúde à TAP, passando pela fiscalidade, os líderes do PCP e da IL concordaram em alguns diagnósticos — mas discordam quase sempre na sua cura.

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Rui Rocha e Paulo Raimundo foram simpáticos entre si José Alves
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Não podia haver maior divergência ideológica sentada nos estúdios da RTP3: de um lado o PCP, representado pelo secretário-geral Paulo Raimundo; do outro a IL, representada pelo líder Rui Rocha. Carregados de ideologia, da saúde à TAP, passando pela fiscalidade, os líderes partidários concordaram em alguns diagnósticos — mas discordam quase sempre na sua cura. O primeiro com uma visão profundamente estatista, o segundo com uma marcadamente liberal: sentados na mesma mesa, são prova de que ainda não se chegou ao “fim da história” profetizado pelo filósofo Francis Fukuyama.

Provocação ou não, a IL entrou no debate a abanar o chavão do “mérito”. É na justiça, pois há que “combater a corrupção e assegurar que as nomeações são feitas mais por mérito do que por favor”; é nos funcionários públicos, que querem motivar através de uma “componente variável da remuneração indexada a objectivos e resultados”.

Raimundo bateu logo com o martelo na mesa: “[Estamos diante] duas visões completamente diferente para o país”, disse, notando que não “há relação entre a produtividade e o salário”. “Antes houvesse, porque os salários estariam mais altos do que estão”, completou.

Não tardou até que os liberais puxassem da carta da União Soviética (URSS). "Portugal precisa de crescimento económico. Temos sido ultrapassados por vários países que saíram da URSS”, disse Rui Rocha — que para colmatar isso propõe “baixar o IRS das famílias, aumentar as isenções para profissionais liberais, acelerar os licenciamentos da actividade económica, reduzir e eliminar taxas e taxinhas, baixar o IRC”. Tudo isto para quê? “Para que possamos atrair capital e investimento estrangeiro”.

Apesar de eventuais arrepios na espinha a ouvir Rocha, o secretário-geral do PCP concordou com a necessidade de reduzir “taxas e taxinhas” propostas pela IL — notando, contudo, que, no Parlamento, os liberais votaram contra a diminuição das “comissões bancárias” propostas pelo PCP.

E daí voou para a TAP, cujo “caminho” de privatização — que, argumenta, está a ser preparada há “20 anos” — deve ser “travado”. Um caminho que, na visão de Raimundo, conta com a “vontade” de Rui Rocha e de “um amplo espectro político”. Segundo o comunista, o “Estado deve ter nas suas mãos instrumentos para dinamizar a economia e o país”. No fundo, “sectores estratégicos”, como a “banca” e as “telecomunicações”.

O duelo vai simpático, mas aqui sobe o tom. Rui Rocha aperta: “Quanto custa nacionalizar [isso]”? Raimundo não tem números, mas nota ironicamente que só se registam “bons exemplos” de quando os sectores foram geridos por “mão privada”.

"O golpe final" na saúde

E se as diferenças ideológicas já eram evidentes, na área da saúde isso fica ainda mais claro. Ambos estiveram no mesmo centro de saúde — de Algueirão Mem Martins — e no mesmo dia, observando o mesmo problema. Mas, para o resolver, apresentam soluções diferentes: PCP quer investir no SNS e formar mais médicos, IL quer liberdade de escolha.

“As pessoas que estão à porta do centro de saúde de Algueirão Mem Martins não podem escolher” outro serviço, explica Rocha, contrapondo com os exemplos da “Alemanha” e da “Holanda”, onde os utentes “podem escolher” se querem o serviço público, social ou privado.

Já para os comunistas, fazer mais parcerias com os privados é “dar o golpe final” na saúde. “Oito mil milhões de euros vão do SNS para o privado — e Rui Rocha acha que isto é pouco”.

“O grande problema do SNS é a falta de profissionais. Isto é o grosso do problema. Instalações óptimas, não há falta de meios físicos, tudo espetacular — mas não tinha médicos. A solução é criar as condições para criar médicos e respeitá-los”, disse Paulo Raimundo.

Apesar de estarem debruçados sobre a mesmo ferida, Rocha e Raimundo propõem tratamentos completamente diferentes. Em 1989, Fukuyama publicou um artigo em que argumentava que, dada a iminente vitória dos EUA na Guerra Fria, teríamos chegado ao “fim da história”: a visão capitalista e demoliberal havia vencido a comunista, sendo uma questão de tempo até que esta desaparecesse. Tal como o próprio autor já admitiu, o prognóstico estava errado — e o serão desta quarta-feira é uma pequena prova disso.

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