O estranho

Tinha sido um sorriso corrigido pela morte, que por vezes tem estas minudências estéticas, contrariando a sua natureza de corrupção e decadência.

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Os traumas não desaparecem simplesmente por andarmos zangados: a São acordava em pânico sempre que chovia demasiado, as tempestades faziam-na sonhar com a Glória, voltava a ser a Sãozinha do asilo e a Glória voltava a ficar esmagada por uma viga de ferro, sorrindo com um sorriso perfeito, apesar de este em vida ter sido sempre torto. Tinha sido um sorriso corrigido pela morte, que por vezes tem estas minudências estéticas, contrariando a sua natureza de corrupção e decadência. A São também evitava olhar para o mar ou para dentro de um poço. Havia cada vez menos contacto físico com a filha, as actividades que a obrigavam a isso já não eram necessárias, dar-lhe banho, dar-lhe de comer, vesti-la, e as manifestações de afecto foram reduzidas a actos mecânicos, beijos raros, abraços em extinção, algumas frases ocas, bom dia, dorme bem, essas coisas. A Ana começou a ir sozinha para a escola. E a regressar também, ainda que o regresso fosse um trajecto comprovadamente mais fácil. Via desenhos animados e o Tarzan, ia enchendo a cabeça de animais que capturava em documentários da vida selvagem, raposas, elefantes, antílopes, cachalotes, hienas. Quando se atrevia a pedir brinquedos, ouvia sempre da mãe a mesma litania, no meu tempo não tinha brinquedos, quer dizer, tinha uma boneca de papel que me davam para que brincasse durante uma ou duas horas na noite de Natal e que depois recolhiam, e só voltava a brincar com ela um ano depois, vocês, os miúdos de agora, são uns sortudos, têm tudo.

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