Pacto Ecológico e PAC, a dança dos pilares

Estamos com protestos no setor agrícola e em dificuldades para conciliar as várias transições em curso, enquanto se aguarda um alargamento a Leste. Uma reforma da PAC terá de ocorrer.

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No final da primeira década deste século foi elaborada uma série de trabalhos de investigação, de iniciativa alemã, conhecida por TEEB (2009) (The Economics of Ecosystems and Biodiversity). É nessa sequência que surgem os primeiros esforços da União Europeia para consagrar uma agenda da biodiversidade, serviços de ecossistema, alterações climáticas e riscos globais, enfim, de uma economia hipocarbónica e ecossistémica. Mais recentemente, essas preocupações ficaram consagrada na PAC, através do Pacto Ecológico (PE) e, em especial, nos chamados ecorregimes.

Estamos em 2024, confrontados com uma série de greves no setor agrícola, perturbações sérias nas cadeias de valor e com claras dificuldades em conciliar os vários vetores e custos das grandes transições em curso: ecológica e energética, tecnológica e digital, agrícola e alimentar, demográfica e migratória, social e laboral, empresarial e intergeracional, tudo isto enquanto se aguarda pelos termos e condições de mais um grande alargamento ao Leste europeu. Até lá, uma reforma substancial da PAC terá de ocorrer.

Sabemos que, em mercados abertos e globalizados, mas insuficientemente regulados, há mais intensificação agrária e, correlativamente, maior pressão sobre os recursos naturais, o solo, os ecossistemas e a paisagem. Sabemos que uma agenda política mais biotecnológica e bioprodutivista acarreta o empobrecimento das comunidades locais e das formas de agricultura tradicional, assim como, uma crescente simplificação dos ecossistemas, com abandono, fragmentação e concentração da propriedade.

Sabemos que até 2050 estamos em estado de emergência climática por causa da neutralidade carbónica e da ação climática que estamos obrigados a cumprir. Essa é a razão pela qual a reforma da PAC para as próximas décadas revestirá uma orientação mais ecossistémica e territorializada com base nos geossistemas agroalimentares (SAL), agroflorestais (SAF) e agropaisagísticos (SAP) de proximidade, eles próprios concebidos como sistemas de fins múltiplos e desenhados para desempenharem funções de infraestruturação ecológica, mosaico paisagístico e corredores verdes.

Sabemos ainda que, no quadro da PAC, a relação entre sistemas agrários, biodiversidade e governação europeia pode ser lida em dois planos. No plano interno, numa aceção que poderíamos designar de reserva alimentar e conservação de recursos. Por isso, deveríamos acionar o princípio de precaução e recolocar o nosso problema alimentar (reserva estratégica e biodiversidade) numa aceção muito ampla e compreensiva de base regional tendo em vista cumprir um leque convergente de objetivos fundamentais: o ordenamento do território, a conservação de recursos e a biodiversidade, a conexão entre unidades de paisagem e sistemas produtivos, a complementaridade e integração cidade-campo.

No plano externo, estamos confrontados com a pressão crescente dos mercados globais sobre os recursos e o ambiente, a deslocalização da produção e a sua substituição por importações, o abandono de terras e a concentração da propriedade. Em termos de abastecimento alimentar, importará saber a divisão do trabalho que queremos fazer entre sistemas agroalimentares locais e fileiras de transformação agroalimentar viradas para o comércio externo, o que, por vezes, nos levantará problemas críticos de segurança alimentar.

Sabemos ainda que, se não houver um equilíbrio bem proporcionado entre aquelas duas opções, estaremos a consumar a separação entre a reserva estratégica, a base biodiversa correspondente e os territórios que as acolhem. Não surpreenderá, então, que assistamos a uma concentração do poder de controlo sobre os recursos naturais, ao alargamento das escalas de produção, à disseminação das monoculturas, à monotonia biofísica e ao empobrecimento da diversidade social dos territórios. Se assim for, assistiremos a uma profunda alteração das relações de poder implicadas por esta mudança de escala e de estratégia, que privilegia os sectores a jusante da fileira em detrimento dos sectores a montante.

Aqui chegados, e passados quase 40 anos sobre a adesão à CEE, não me conformo com um país tão pequeno, tão bem-dotado de vias de comunicação, com uma rede distrital de instituições universitárias e politécnicas e, ainda assim, caracterizado por fortes assimetrias regionais, uma agricultura dualizada e cidades do interior de pequena dimensão e com fraco poder de aglomeração. Eu creio que isto é assim porque, no plano corporativo, a agricultura cristalizou-se em redor de duas grandes organizações corporativas que, no essencial, mantêm a ideologia de sempre. De um lado, os grandes grupos familiares e as propriedades latifundiárias e, agora, também, os fundos de investimento nacionais e estrangeiros, de outro, a mesma miríade de micro e pequenas explorações, sem capital financeiro e capital de gestão e sem poder político próprio.

Tudo somado, e apesar do TEEB e do Pacto Ecológico, estamos ainda longe do que poderíamos designar como um ponto paradigmático de viragem, isto é, no limiar de um 3.º pilar da PAC para o mundo rural. De facto, uma economia rural TEEB/PE, no plano europeu é, para já, um caminho algo estreito, não obstante os sinais positivos nessa direção. Ou seja, uma economia TEEB/PE (3.º pilar) tem muita dificuldade em confrontar-se com uma economia OCMA (organização comum dos mercados agrícolas, 1.º pilar) e uma economia PDR (programa de desenvolvimento rural, 2.º pilar), há muito instaladas no mundo do agronegócio e do agroterritório.

Seja como for, os montantes orçamentais afetos à PAC são muito elevados e não podem permanecer por mais tempo com a atual distribuição entre países e o 1.º e o 2.º pilar. Ou seja, a PAC está obrigada a fazer mais e melhor com menos. A criação de um 3.º pilar de fins múltiplos para os geossistemas e a bioeconomia pode ser o argumento que faltava para promover a reforma e a preservação da PAC numa perspetiva mais transdisciplinar, ecossistémica e regionalizada, isto é, no âmbito de uma política de regiões e de redes de cidades como instrumento essencial no combate às assimetrias causadas pelas grandes transições e os grandes riscos. Num primeiro momento, vamos assistir a um reforço das medidas verdes e sua autonomização, (o 3.º pilar), num segundo momento a um reajustamento dos conteúdos dos três pilares e seus envelopes financeiros, num terceiro momento, provavelmente, a uma fusão do 2.º e do 3.º pilar. A dança dos pilares da PAC já começou. Das greves também. Esteja atento aos próximos episódios.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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