As alterações climáticas estão a acelerar os incêndios fatais no Chile

Pelo menos 112 pessoas morreram na região de Valparaíso, no centro do Chile. “Os efeitos do aquecimento global sobre o clima já não podem ser ignorados”, diz cientista.

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Ingrid Crespo ao lado do que resta da sua casa que ardeu nos incêndios em Vina del Mar, no Chile, durante esta semana RODRIGO GARRIDO/REUTERS
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Há anos que os chilenos se têm vindo a adaptar à ameaça dos tsunamis, aprendendo a importância de desenvolver planos de evacuação e de afastar os hospitais e outros edifícios essenciais da zona costeira. Os rigorosos códigos de construção no país reflectem a ameaça de grandes terramotos. Mas os incêndios, que normalmente não constituem tanto perigo nesta parte do mundo, estão a revelar-se um novo desafio assustador e mortal na era das alterações climáticas.

Quando as chamas destruíram uma cidade e mataram 11 pessoas em 2017, “toda a gente pensou que se tratava de uma situação muito especial e única”, disse Francisco de la Barrera, investigador da Universidade de Concepción. Depois, em 2023, os incêndios queimaram mais de um milhão de hectares e mataram duas dúzias de pessoas.

Actualmente, o Chile enfrenta o incêndio mais mortífero de sempre: pelo menos 112 pessoas morreram quando os incêndios destruíram comunidades isoladas nas montanhas e atingiram áreas densamente povoadas na região de Valparaíso, no centro do Chile, a noroeste da capital, Santiago. Tal como a grande maioria dos incêndios na América do Sul, o incêndio foi provavelmente provocado por seres humanos, mas o calor e a seca provocados pelas alterações climáticas permitiram que as chamas se propagassem a uma velocidade impressionante.

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Casas queimadas após os incêndios no Chile RODRIGO GARRIDO/REUTERS

Nos últimos dias, as chamas propagaram-se em cerca de 100 incêndios diferentes, enquanto as temperaturas subiam persistentemente até bem acima dos 30 graus Celsius, um calor sem precedentes para o país costeiro, que provocou ventos quentes e secos que desciam as encostas íngremes. As temperaturas recordes também contribuíram para uma temporada de incêndios excepcionalmente activa em todo o Norte da América do Sul neste Verão.

Tanto na América do Sul como no resto do mundo, o aquecimento global está a aumentar a capacidade dos incêndios atravessarem paisagens ressequidas e surpreender comunidades não habituadas às chamas, impotentes para as combater. Os megaincêndios, outrora considerados uma anomalia, estão a tornar-se mais comuns e mortais à medida que a seca persiste e o calor se intensifica, sublinhando a necessidade de adaptação — mas também a futilidade de tentar impedi-los num clima alterado.

“Os efeitos do aquecimento global sobre o clima já não podem ser ignorados”, disse Raúl Cordero, um cientista climático da Universidade de Groningen, nos Países Baixos, que esteve anteriormente no Chile.

O deflagrar de incêndios tem sido comum no Chile durante episódios do padrão climático El Niño — que tem estado agora a aproximar-se de uma intensidade dramática nos últimos meses — incluindo em 1982 e 1998, afirmou Cordero. Mas nunca se espalharam tão ferozmente como desde 2017, quando o aquecimento acelerou os incêndios na sequência de um El Niño histórico. É por isso que o último incêndio foi tão mortal, considera — muitos residentes ignoraram os alertas de telemóvel com ordem de retirada, porque não conseguiam imaginar as chamas a galgar em direcção às suas casas tão rapidamente.

“O que é novo aqui é o aquecimento global”, disse Cordero.

Crise climática agrava ameaças

Foram necessários anos para que surgisse o cenário ideal para estes incêndios no Chile, mas agora os efeitos destes incêndios são inegáveis.

O país está a meio de uma seca que dura há décadas, a pior da região num milénio, que também foi acentuada pelas alterações climáticas, disse Wenju Cai, um investigador principal da Organização de Investigação Científica e Industrial da Commonwealth da Austrália.

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Carros e casas queimadas no exterior da casa de uma das trabalhadoras do Jardim Botânico de Vina del Mar, que morreu no incêndio juntamente com a sua mãe e os seus dois netos de nove anos e um ano Adriana Thomasa/EPA

A precipitação que no passado sustentava o país está a mudar-se para sul à medida que o aquecimento global altera os padrões meteorológicos, disse Cai. Quando os rios atmosféricos provocam fortes precipitações, é difícil que a água penetre no solo seco. Esta tendência está a exacerbar as flutuações naturais que, no passado, contribuíram para épocas de incêndios menos intensas durante os meses de Verão do Hemisfério Sul.

Durante o Inverno mais recente do Hemisfério Sul, o El Niño alimentou as chuvas que criaram inundações e permitiu que a vegetação crescesse antes de as ondas de calor sem precedentes a transformarem em lenha para os incêndios. Entretanto, as temperaturas de Inverno atingiram os 38 graus Celsius em vastas áreas da América do Sul, em ondas de calor que, segundo os cientistas, provavelmente não teriam ocorrido se não fossem as alterações climáticas.

Agora, durante a última semana, o Chile foi alvo de altas temperaturas, num calor de Verão sem precedentes. Uma estação meteorológica na região de Valparaíso registou temperaturas que chegaram aos 36 graus Celsius, enquanto os incêndios se propagavam na sexta-feira e no sábado. A região de Santiago teve cinco dias consecutivos de calor em torno dos 35 graus Celsius durante aquela que foi a semana mais quente já registada na região central do Chile, disse Cordero.

As tendências de longo prazo dão a entender que as condições se tornarão mais propícias aos megafogos, sem que se vislumbre o fim da seca de longo prazo e com um clima cada vez mais quente, fortalecendo os ventos para atiçar as chamas, disse Wenju. “O Chile não tem nada a ganhar”, disse.

Chile está a preparar-se para mais incêndios

Embora o país tenha tomado algumas medidas drásticas para enfrentar os riscos de incêndio, ainda não está preparado para eles, em comparação com outros lugares como o Sul da Califórnia, disse Cordero. Lá, os ventos de Santa Ana (ventos fortes e secos que afectam a Califórnia) comportam-se da mesma forma que aquilo a que muitos chilenos chamam ventos Puelche, aquecendo e secando rapidamente à medida que descem as encostas íngremes.

Mas, ao contrário do Oeste americano, onde os moradores cansados das ameaças de incêndio têm tomado mais medidas para se protegerem a si e às suas casas, pouco está a ser feito no Chile para preparar as paisagens para a ameaça de incêndios. A grande maioria é provocada pelos humanos, disse Francisco de la Barrera.

As florestas plantadas para a exploração madeireira e a produção de papel são dominadas por espécies não-nativas inflamáveis e que se estendem por hectares ininterruptos, sem os aceiros e outras precauções que poderiam impedir a propagação de megafogos cada vez mais comuns, explicou. Essas plantações foram um factor importante na temporada de incêndios de 2023 no Chile, disse Cordero.

Nos últimos anos, o Chile fez fortes investimentos em recursos humanos, equipamentos e tecnologia de combate a incêndios, com o presidente Gabriel Boric a aumentar os gastos em 47% em menos de dois anos no cargo, informou a Agence France Press (AFP). Mas Dolors Armenteras, professora da Universidade Nacional da Colômbia, disse que até mesmo isso está a ser insuficiente para esta nova realidade de incêndios da América do Sul. “Ainda não somos capazes de parar esses incêndios”, afirmou. “Vamos ter megafogos de novo. Esperemos que não haja gigafogos.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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