As melhores dificuldades

Sonhando então, de novo, com a reparação e o Paraíso, onde a ovelha se deitará com o leão, a galinha com a raposa, pondo a roda a rodar pela eternidade fora.

Ouça este artigo
00:00
02:13

Sou um sibarita, mas não praticante, disse o falecido professor Espinosa, sentando-se no braço do sofá onde a Alexandra adormecera de cansaço. Ando neste limbo, entre mortos e vivos, quando poderia entregar-me a luxos celestiais. De resto, aquilo não é bem como se pensa. A Alexandra, sem acordar, disse saber muito bem como é. Não sei se sabe, retrucou o professor. Olhe, continuou, tenho discutido muito com Buda, ele acha que nos devemos libertar do sofrimento da reencarnação, mas não, depois de experimentarmos uma existência celeste que é como férias para sempre, começa-se a desejar dificuldades, algum obstáculo, nem que seja uma penhora das Finanças. Não somos empurrados, como Buda defende, para mais sofrimento, ao contrário, desejamo-lo. Os mortos, depois de umas margaritas em praias paradisíacas, entediados com a existência perfeitíssima, bronzeados e elegantes, querem regressar à vida em que a entremeada, ou porque Deus não quer ou porque o médico não deixa, é desaconselhada, proibida e, em alguns casos, mortal; querem regressar à vida em que uma meia dúzia de pessoas infelizes será rica para miséria de todos os outros, o pobre será constantemente esmagado, e onde heroicamente se luta pela liberdade e pela justiça, sonhando então, de novo, com a reparação e o Paraíso, onde a ovelha se deitará com o leão, a galinha com a raposa, pondo a roda a rodar pela eternidade fora: querer paz quando em guerra, querer guerra quando em paz. Como diria Buda, mas não da mesma maneira: o eu individual é uma ilusão. Somos na essência uma vida abstracta e una, que se fragmenta para poder experimentar as suas múltiplas variantes e possibilidades de um ponto de vista particular, como num jogo, escolhendo uma das inúmeras entidades ao dispor, com níveis de dificuldade diferentes, tentando o melhor resultado. A morte é a pergunta: e agora? E nós, ainda essência abstracta: agora quero experimentar ser um pug nas mãos de um aristocrata que passará as tardes a jogar canasta e a beber chá com leite. Ou uma freira cardiognóstica. Ou um cipreste num cemitério a alimentar-se de mortos. As hipóteses são inúmeras. E despedimo-nos assim: Até breve. Desejo-lhe as melhores dificuldades.

Sugerir correcção
Comentar