Areia nos sapatos

Se Deus existisse, não seria preciso uma pessoa levantar-se constantemente para mexer na antena da televisão.

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O Almeida era daqueles que aparecem no trabalho com bocadinhos de papel higiénico colados nos lugares da cara onde se cortaram a fazer a barba. A Alexandra continuou a levar a Ana à praia. A São já não ia à missa e não queria saber de Deus para nada. O Calvo serviu sável frito com açorda de ovas. A São percebeu que a Ana tinha areia nos sapatos. A Alexandra ia ensinando a Ana a sorrir como a Gioconda. Sempre peixe, disse a São. Sobre a areia nos sapatos, esclareceu o Calvo: é o problema de passar a tarde num parque infantil. A São, apesar de não ir à missa e não querer saber de Deus para nada, por vezes rezava, mais por hábito do que por fé, “Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça, quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade.” O Almeida usava uma pulseira de prata com o seu nome gravado. Os livros do francês cuja escrita fazia lembrar a lábia do Moisés continuavam a ser lidos e relidos. A São acendeu um cigarro e apagou-o no prato, no que restou da açorda de ovas. O conde de Clairmontel mandou fazer uma carapaça de ouro para cobrir a corcunda, lia-se no livro do francês. Sempre peixe, repetiu a São. Até eu fiquei com areia nos sapatos no parque infantil, disse o Calvo. O conde ficou conhecido por tartaruga doirada. Ninguém quer saber se ficou ou não com areia nos sapatos, disse a São ao Calvo, sabendo perfeitamente que aquela areia vinha da praia e não do parque infantil. A Alexandra pôs um vinil a tocar, um pouco de Chopin nunca fez mal a ninguém. A São ligou a televisão, não quero ouvir música, disse ela (e só para embirrar ficou a ver o tempo de antena). As personagens dos livros do francês diminuíam muito a qualidade das pessoas reais. Se Deus existisse, não seria preciso uma pessoa levantar-se constantemente para mexer na antena da televisão, disse o Calvo. O vento nu do fim da tarde, amarelo como um lençol velho, cobria as águas e, passando por elas, penteava-lhe os cabelos, lia-se no livro do francês. A televisão está sintonizada, senhor Calvo, disse a Alexandra, esse homem fala mesmo assim, não se acaba com a demagogia mexendo na antena.

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