Sem apetite

Fazia o possível para aguentar a dor, até desajeitadamente se separarem, que era a condição natural daquela relação.

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Quando a Marília foi contratada para a empresa de exportações, o inclinado Antunes passou a debruçar-se apenas sobre a secretária dela, ignorando a São. Nunca mais a convidou para comer esparguete com natas e bacon e queijo em pó, nem a levou a dançar à boîte. As inclinações sedutoras sobre a figura da Marília tornaram-se um espectáculo comum e, para a São, aviltante, que todos os dias a magoava. Foi readquirindo a sua tristeza habitual, a timidez dos gestos, as hesitações, mas já não era a mesma mulher. Não gostava do Antunes, nunca tinha gostado, mas sabia-lhe bem ser desejada, do mesmo modo que agora sofria por se sentir desprezada. É claro que tinha em casa quem a amasse, mas não sabia o que fazer com isso. Por vezes lembrava-se do Moisés e imaginava o que poderia ter sido a sua vida caso as escolhas tivessem sido outras, mas depressa afastava essas fantasias, afinal tinha uma filha e se o passado não tivesse sido aquele, também a sua filha não seria aquela, talvez não existisse nenhuma filha. Quando saía do emprego, sentava-se num snack-bar até à hora de jantar, comia um croquete, bebia uns vermutes ou umas ginjas, acendia um cigarro atrás do outro e, quando chegava a casa, a maior parte das vezes sem apetite, sentava-se no sofá a ver a telenovela ou fechava-se no quarto.

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