Trabalhos para casa: claro que não

Os encarregados de educação e pais, já sobrecarregados por empregos mal pagos, precários e que exigem energia mental e física, ainda são forçados a abdicar do tempo de família.

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Megafone P3: Trabalhos de casa Getty Images
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O documentário Homework, de 1989, do realizador iraniano Abbas Kiarostami, mostra uma realidade perturbadora: entrevistas com vários alunos e dois pais de alunos da escola Shahid Masumi, a propósito dessa prática tão tradicional de enviar trabalhos para casa.

Claro que o bias da sociedade iraniana e do próprio tempo em si se colocam. Não há grande comparação possível com as sociedades ocidentais. E se a relação essencial se mantiver, mude o país, mude a cultura, mude a percepção? Há situações transversais, como a incapacidade de alguns pais em ajudar os filhos, pelas mais variadas razões. As crianças não conseguem esconder os aspectos mais embaraçosos da sua vida, sejam os castigos físicos, a privação ou a comparação com quem tem mais: o que fica é o retrato devastador da diferença entre ricos e pobres. Entre quem pode e quem não pode.

Viajando mais de 30 anos, mais para o ocidente, vemos e escutamos uma prosa continuada de culpabilização e responsabilização dos pais, a propósito da educação, do desempenho escolar e de outros aspectos relacionados com a vida dos mais novos. Vamos deixar de lado o aspecto já batido das óbvias diferenças sociais, que criam clivagens acentuadas (mas que parecem ser ignoradas por quase toda a gente). Vamos focar-nos no prático dos trabalhos para casa (e até poderíamos ir mais longe, focando esforços na encíclica relação entre notas de testes e exames e desempenho académico).

Os "tpc" só servem para o seguinte, mesmo que os tiros nos pés não sejam logo óbvios: entrada desenfreada do espaço escola no espaço família (curiosamente, o fenómeno em sentido contrário é quase sempre diabolizado); captura do tempo de lazer e de ócio familiar (depois de quase meio dia a fio na escola); desequilíbrio na relação escola/família; inexistência do tempo de brincadeira (e assumir que o tempo de escola é mais importante do que o tempo brincadeira, o que é uma grosseira mentira); agenda de acatamento, disciplina autoritária e preparação tida como certa para uma vida incerta; convite à "normose"; responsabilização dos pais e encarregados de educação por temas que podem não dominar; tomada de pressuposto e colagem de rótulos.

A pretexto de uma suposta preparação e consolidação, os trabalhos para casa reinam incontestados, arautos do esforço e do "mérito", ao serviço de programas e de um sistema tão ultrapassado quanto classista.

Fruto da falta de tempo, os encarregados de educação e pais, já sobrecarregados na sua grande maioria por empregos mal pagos, precários e que exigem energia mental e física, ainda são forçados a abdicar do tempo de família para cumprirem com funções suplentes que lhes roubam o necessário tempo para consolidarem laços familiares.

Não se admirem dos telemóveis, dos tablets e dos ecrãs: não nasceram de geração espontânea. São a fácil solução para uma vida mais sobrevivida do que vivida: foi a escola pouco exigente (mas que crê ser o oposto), em termos humanos, dos testes e dos "tpc", que inventou estes refúgios.

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