Do precariado pós-industrial ao pronetariado digital

Que traço comum ligará hoje a servidão voluntária, o Big Brother do ministério da verdade, o vigiar e punir das instituições de controlo social ou singularidade da Inteligência Artificial?

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O que terão em comum autores tão diferentes como Etienne de la Boétie (1530-1563) que em 1548 escreveu O discurso da servidão voluntária, Jeremy Bentham (1748-1832) que em 1787 escreveu O panótico, George Orwell (1903-1950) que em 1948 escreveu 1984, Michel Foucault (1926-1984) que em 1975 escreveu Vigiar e Punir, mas, também, O nascimento da biopolítica em 1978 e A microfísica do poder em 1979, Ray Kurzweil (1948- ---) que em 2006 escreveu A singularidade está perto, ou, ainda, Pedro Domingues (1957---) que em 2017 escreveu A revolução do algoritmo mestre?

Em diferentes contextos históricos eles trazem até nós momentos únicos do pensamento da sua época, mas, também, da história do pensamento universal. Que traço comum ligará, hoje, em 2024, a servidão voluntária, a arquitetura do panótico, o Big Brother do ministério da verdade, o vigiar e punir das instituições de controlo social, a singularidade da inteligência artificial ou o algoritmo mestre da aprendizagem automática? Em primeira leitura, todos eles escreveram sobre a relação entre o poder e a liberdade, a liberdade que o poder autoriza e o poder que a liberdade consente. E na era digital, da Inteligência Artificial, da aprendizagem automática e do transumanismo, o que nos estará reservado?

Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro é aquela que diz respeito à aceleração e divisibilidade tecnológicas e sua transferência para os domínios da liberdade individual e da vida quotidiana. Refiro-me à transformação de necessidades individuais, de desejos pessoais e de serviços públicos em objetos de consumo industrial que, doravante, ficam ao alcance e ao dispor da internet das coisas (IOT), da conexão generalizada e da indústria de serviços personalizados ou customizados.

A grande transformação será, então, a conversão da indivisibilidade de um serviço público, coletivo ou social na divisibilidade de um objeto privado produzido pelo mercado e tornado possível pelo avanço tecnológico. Os serviços públicos prestados pelo Estado e outras coletividades via imposto seriam, então, progressivamente substituídos por objetos privados prestados por empresas via preço. O Estado seria progressivamente reduzido à sua dimensão mínima, a mercantilização alastraria a todos os domínios. Aqui chegados estaríamos perante a edificação de uma outra sociedade a que alguns chamam A sociedade algorítmica. Nesta sociedade, o Big Data teria muitas semelhanças com a torre central do grande panótico da era digital onde reinam os inspetores-chefe dos grandes conglomerados tecnológicos de um território imenso denominado a internet of everything e onde dominam a novilíngua cibernética, o novo código de linguagem da sociedade e da governança algorítmicas. Estes níveis de condicionamento e conformidade seriam a base de uma nova estrutura de poder, de uma nova servidão voluntária, onde todos somos, ou podemos ser, ao mesmo tempo, sensores, delatores e censores.

Neste território imenso reina já o hipercapitalismo GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber), uma espécie de uberização da sociedade, à imagem e semelhança da empresa Uber. Este hipercapitalismo apanhou o Estado-regulatório bastante desprevenido e impreparado. Estamos hoje em plena sociedade algorítmica rodeado de plataformas e aplicações por todos os lados. Enquanto se aguarda que a nova ideologia regulatória, talvez de origem europeia, com o mercado único digital, tome conta da ocorrência e ponha alguma ordem no sistema económico, o mundo do trabalho oscila, cada vez mais, ao sabor da economia das plataformas desmaterializadas hipercapitalistas cujo âmbito e escala se alargam todos os dias.

A ideologia da uberização é, pois, a última versão radical do capitalismo, desta vez com uma pretensão verdadeiramente alucinante, a saber, o anúncio de um novo regime independente pós-salarial e com uma nova reputação. Doravante, não há relação salarial, não há sindicato, a reputação não tem contraditório, não há hétero nem autorregulação, trata-se, afinal, de trabalho independente e intermitente, mais uma prestação de serviço do que uma relação contratual. É a modernidade líquida em todo o seu esplendor: tudo fluido, precário, transitório, passageiro, líquido, como tudo o que a Uber transporta. Estamos, portanto, em trânsito acelerado do precariado pós-industrial para o pronetariado digital, quais escravos das redes, aplicativos e das estrelas de reputação, no interior do capitalismo neoliberal e numa clara regressão civilizacional em matéria de direitos económicos, sociais e humanos. É preciso avisar, em particular, os nativos digitais mais distraídos para esta sedução virtual e para a ilusão do falso empreendedorismo que é passado através de uma presumida relação pós-salarial.

Nota Final

Não, não vou anunciar ao mundo, de novo, a máxima de Karl Marx, adaptada aos tempos atuais, pronetários de todo o mundo, uni-vos. Digo-vos, porém, o que me inquieta. Através da NET e das suas inúmeras redes e plataformas o potencial de extração de mais-valias do trabalho humano é cada vez maior. Voltámos à indústria extrativa do capitalismo, agora por alguns também denominado de capitalismo cognitivo (Boutang, 2007) e por muitos outros com a designação ambígua de economia colaborativa. Passámos, pois, a ser colaboradores. Quer dizer, na era digital que já aí está, uma das vias abertas é a via pronetária, os precários da rede, os novos proletários da NET. Mas outras vias e alternativas existem – uma internet primordial - que precisam de ser exploradas. Desde logo, uma internet dos territórios (1) que nos assegure mais e melhor coesão territorial e ambiental. Depois, uma internet BCC (2), dos bens comuns e colaborativos que nos assegure uma nova economia da partilha com mais e melhor coesão social e onde a variedade dos regimes de prestação de trabalho seja a norma. Por último, uma internet mutualista (3), uma espécie de Wiki da segurança social que nos abra as vias para a dignidade da sociedade sénior, as moedas locais, o microcrédito e o financiamento participativo, o banco de cuidadores e do trabalho voluntário, mas, também, para um novo associativismo/sindicalismo do século XXI que nos traga de volta a dignidade do trabalho, a proteção do risco global e a felicidade de viver. Teremos de voltar ao assunto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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