Uma nova geração de cardeais em busca da função social da Igreja Católica?

O afastamento do político foi agora abalado por Américo Aguiar (já cardeal de facto) e Rui Valério (ainda “apenas” Patriarca de Lisboa, aguardando a efetiva passagem ao cardinalato).

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Desde o fim do chamado Antigo Regime, com o fim da sociedade de ordens, com o fim do regime feudal e da terratenência como poder central organizador da sociedade, que a Igreja Católica procura recriar a sua função social. Com um grande embate com o socialismo em plena Revolução Industrial, a encíclica Rerum Novarum, de 1891, transformou-se no instrumento orientador dessa busca de sentido social.

No caso português, a Igreja Católica vê nascer a contemporaneidade, o século XIX, num registo que lhe foi completamente negativo: o fim do seu poder material esvai-se por decreto, com o confisco dos bens das ordens religiosas e, mais, ficará pelos dois séculos seguintes conotada com os meios mais conservadores ao ter, grande parte da sua hierarquia, ficado do lado miguelista na luta entre liberais e absolutistas.

O século XX irá lançar para um tempo ainda mais longo esses dois problemas: ajustar-se a um mundo onde o seu poder temporal era menor, e perder a confiança de parte da sociedade que a representa como retrógrada, ultrapassada, agarrada a clericalismos e gestão de poder muito longe do seu lugar espiritual. Os processos de laicização e de secularização retiraram a Igreja Católica do centro da vida da maioria dos cidadãos.

Agora que se comemoram os 50 anos do 25 de abril, importa ter consciência da grande rutura que essa revolução trouxe a dois séculos de tensão entre religião e política. Conscientes de que Portugal não poderia ter uma nova "questão religiosa" como a que criou fraturas tremendas na I República, quer religiosos, quer políticos, geriram de forma exemplar esses conturbados tempos. Houve exceções, claro, mas no essencial a coabitação foi pacífica e as feridas centenária não foram centrais na criação de clivagens sociais, culturais e políticas. Mário Soares, por um lado, e António Ribeiro, por outro, foram a imagem da forma construtiva que tem marcado estas cinco décadas.

A uma Igreja altamente representada como ligada ao Estado Novo sucede uma outra que é caracterizada por não se imiscuir nos processos políticos. Mesmo em alguns momentos, como os referendos à interrupção voluntária da gravidez, viu uma hierarquia muito contida na sua visibilidade e opinião, sendo o universo católico representado por um grupo mais ou menos organizado, um "ativismo católico", cada vez mais neutralizado (Veja-se o excelente texto de Paulo Reis Mourão Os cristãos e o não à política (europeia), aqui no PÚBLICO de 4 de Janeiro de 2024).

Este silêncio, quebrado por algumas figuras menos alinhadas com o mainstream católico, como Frei Bento Domingues ou o bispo Januário Torgal Ferreira, foi a forma de alicerçar essa relação positiva, sem multiplicar as máculas do passado. O preço de uma paz com o regime teve na irrelevância de opinião o seu mais dramático resultado. Não se sabe o que "pensa" a Igreja de um sem número de questões fulcrais na nossa sociedade, muito menos a maioria dos bispos, figuras sem qualquer relevo ou destaque na sociedade nacional.

Este afastamento ao político foi agora fortemente abalado com duas posturas, muito próximas no tempo e nas temáticas, pelos dois novos cardeais portugueses (um deles, Amério Aguiar, já cardeal de facto e, o outro, Rui Valério, ainda “apenas” Patriarca de Lisboa, aguardando a efetiva passagem ao cardinalato).

No dia 23 de dezembro, dando um vislumbre do que veríamos nos dias seguintes, Américo Aguiar, o grande obreiro da Jornada Mundial da Juventude e agora bispo de Setúbal, encarnando a herança de Manuel Martins, bispo da então criada diocese entre 1974 e 1998, lançava a tónica em entrevista ao Telejornal da RTP: "A Igreja deve manter-se na política (não na política partidária)".

Seria esta a postura dos novos cardeais portugueses? Dois dias depois, nas cerimónias do Natal, Rui Valério, Patriarca de Lisboa, daria mais corpo, confirmando a firmação de Américo Aguiar, com uma intervenção verdadeiramente política, afirmando uma nova postura há muito não vista num prelado que dirija a capital:

"As notícias do aumento da pobreza, do número de famílias que, na labuta do dia-a-dia, têm cada vez mais dificuldade em fazer face às necessidades básicas, são sinais de um país que dificilmente consegue estar à altura de dar uma vida digna aos seus cidadãos". Segundo Rui Valério, chega-se ao Natal com "a amarga sensação de que o projeto de civilização inaugurado pelo próprio nascimento de Jesus Cristo, e maturado ao longo dos séculos, está a regredir".

É uma nova postura, não partidária, mas desassombrada. Sem medo de criticar e de mostrar os pontos bastante fracos da nossa sociedade. No caso português, temos, finalmente, clérigos ao mais alto nível hierárquico que, podemos dizer, nada devem ao ambiente pós-revolucionário e, assim, não se inibem de dizer o que o pensam, sabendo que o que afirmam terá implicações, será ouvido e, assim, terá de ser tido em conta.

Com Américo Aguiar e Rui Valério, a Igreja Católica voltou a ter voz significativa? Estaremos perante um epifenómeno ou, no caso da Igreja Católica em Portugal, estaremos perante uma forte tentativa de reencontro da função social de uma das entidades que mais a deveria ter, mas que pouco se tem esforçado por isso?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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