Os cristãos e o não à política (europeia)

Não rende votos dizer-se cristão ou católico junto inclusive dos cristãos e dos católicos. Por vezes, o termómetro marca 3 graus positivos e a sensação térmica é de “menos 5”.

Jacques Delors morreu nos últimos dias de 2023 e aí morreu um cristão católico que se dedicou à política. Torna-se esta efeméride uma oportunidade para reflectir por onde andam os cristãos e os católicos na participação política. O Papa Francisco e diversas figuras do episcopado nacional e europeu têm manifestado inquietação perante o sonoro “não” que muitos cristãos e católicos têm dado à política na Europa.

Qual e porquê a diferença face às gerações do pós-II Guerra Mundial ou do Concílio Vaticano II? Qual a diferença face a muitos políticos americanos atuais (norte-americanos ou latino-americanos), africanos e até asiáticos que se assumem explicitamente cristãos ou católicos? Desde logo, a assunção religiosa mobilizava em 1960/1970 e mobiliza atualmente nos outros continentes mas não o consegue na Europa de hoje. A Europa que foi palco do melhor e do pior da ação política e histórica do cristianismo parece agora desinteressar-se mutuamente do cristão e do cristianismo. O mesmo cristianismo que mobiliza aqueles e inspirava esses porque era/é sinal de resistência de diversos grupos e comunidades, porque rendia/rende capital político (votos nas eleições, popularidade do político mas também influência dos grupos associados) e ajudava/ajuda na internacionalização das respetivas lutas políticas individuais ou nacionais.

As causas e consequências para o que se passa na Europa relativamente a este esbatimento da expressividade católica (e cristã) na política são complexas. Aponto de seguida algumas das mais evidentes.

Em primeiro lugar, não existe um "ativismo católico" porque o sistema vigente o foi impedindo e neutralizando. Houve, a nível europeu, uma oficialização de “a César o que é de César”, não misturando (nem se misturando) pois a Igreja com a política nas democracias parlamentares europeias. A Igreja existe facilmente no social, sobrevive no desporto e sublima-se na expressão cultural mas não respira bem nos biomas da política europeia.

Em segundo lugar, devemos reconhecer que não rende votos dizer-se cristão ou católico junto inclusive dos cristãos e dos católicos. Por vezes, o termómetro marca 3 graus positivos e a sensação térmica é de “menos 5”. O mesmo se passa com o catolicismo – a Europa apresenta estatísticas (como no último livro de Eduardo Duque que disseca muito bem estas matérias) em que a maioria dos inquiridos se assume crente ou cristão, mas a “sensação térmica” é a de que os cristãos e os católicos são claramente minorias nas nossas sociedades. Rende muitos mais votos – até porque é um mimetismo do eleitor mediano – dizer-se não-crente, tolerante com os crentes, liberalizante, moderno ou modernista. Aliás, muitos vêm acusando um certo "cancelamento" do católico e do pensamento católico nos partidos políticos europeus.

A terceira causa tem a ver com a antropologia do cidadão europeu atual. Este cidadão tende a ser um indivíduo com o espírito fragmentado (quase numa lógica jungiana). É um cidadão que assume um fragmento da sua personalidade em cada momento que o desafia – o cristão benfiquista num jogo do Benfica raramente precisa de assumir o cristianismo (mas também – devemos reconhecer – não tem de o repudiar). Logo um cristão assume-se principalmente socialista ou social-democrata ou comunista na discussão política, sem necessariamente ter de rejeitar que é cristão, benfiquista ou licenciado em Gestão (que assumirá mais nitidamente nas expressões de religiosidade, de fervor clubístico ou num CV).

Finalmente, a quarta causa – de acordo com alguns estrategas e politólogos cristãos, o cristianismo tem presença na generalidade das discussões políticas e partidárias, não enquanto confissão explícita mas enquanto indução implícita. Avanços dos direitos humanos assim como as dissensões sobre temas como os do aborto, eutanásia, ou casamentos de cidadãos do mesmo género são evidência dessa transversalidade. Seria redutor sectoralizar/partidarizar o que é transversal, nesta linha de explicações.

Há duas consequências principais desta dinâmica. A primeira é por demais evidente: a tibieza do cristão político na política e por arrastamento a modéstia da expressão cristã na generalidade da política europeia. A segunda consequência é mais profunda e resume-se a uma “estranheza recíproca” – o cristão desinteressa-se da política (vendo-a cada vez mais como espaço "impróprio", povoado de corrupção ou até de “pecado”) e o político europeu claramente olha com cada vez maior distância para o cristianismo (como algo remoto, estranho ou até cada vez mais radical).

Entretanto, existe algo de sintético no poema de Ruy Belo: “não é que no mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé /nem nada impomos do que duvidamos”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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