Uma questão cultural e não de bênçãos

Maria está acima do ministério de Pedro pois é a realidade primordial, a forma inigualável da Igreja e a única isenta de corrupção. A organização institucional, com base nos apóstolos, é posterior.

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Algo faz estremecer as fundações do Vaticano como estrutura hierárquica e de poder. Contudo, foi dada a garantia a Pedro de que não vacilará (Mt 17-19). Para chegar ao âmago das actuais disputas começamos por colocar o enfoque na audiência do Papa Francisco à Comissão Teológica Internacional, no dia 30 de Novembro. Esta comissão foi criada por Paulo VI como apoio à Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Dicastério), uma ajuda eficaz para as questões doutrinais de relevo. No encontro Francisco optou, mais uma vez, pela espontaneidade e saiu-lhe a verdade em directo; ou seja, contou quantas mulheres integram a comissão deparando-se com um número bem restrito: cinco, face ao elevado número de elementos masculinos. Foi então que afirmou, uma vez mais, que há um défice da presença feminina na Igreja. Mais, atreveu-se a dizer que “um dos grandes pecados que cometemos foi masculinizar a Igreja”.

Deu, assim, o mote à comissão para assumir a tarefa de desmasculinizar a Igreja através da teologia: as mulheres “têm uma capacidade de reflexão teológica diferente da que nós, homens, temos”, afirmou. Porém, deixou claro que a desmasculinização não se faz pela ascensão das mulheres ao ministério ordenado, mas pela mística do real, isto é, pela evangelização teológica com o mundo da cultura e com o Povo de Deus: de baixo para cima. Francisco propõe-se elevar todos à sólida cultura da fé cristã. Anunciou, também, que o tema da feminilidade da Igreja iria estar no centro do encontro com os cardeais que o ajudam no governo.

Um dos aspectos interessantes do discurso oficial, escrito, foi a referência que Francisco fez à sua matriz balthasariana. Centra-se, portanto, numa orientação teológica e doutrinal inspirada num dos grandes teólogos do século XX, Hans Urz Von Balthasar (1905-1988), também ele jesuíta. A afirmação de que a Igreja é mulher já a encontramos no pensamento teológico de Von Balthasar (Cardeal Joseph Ratzinger; Hans Urs Von Balthasar, Maria Primeira Igreja, Gráfica de Coimbra, 2004) e em todos aqueles teólogos que na primeira metade do século XX impulsionaram o regresso ao pensamento patrístico, entre eles Joseph Ratzinger. Foram teólogos determinantes no Concílio Vaticano II.

Ao revelar a sua matriz balthasariana o Papa Francisco está a dizer-nos que se integra plenamente na tradição patrística do primeiro milénio, pois a afirmação de que a Igreja é mulher remonta ao pensamento teológico dos padres do primeiro milénio do Cristianismo, grandes defensores da Incarnação de Deus na História da humanidade.

Começamos, assim, a delinear o problema que se avoluma dentro da Igreja Católica e recorrente ao longo dos dois mil e poucos anos do Cristianismo. Portanto, nada de novo. As primeiras pistas, que vamos utilizar, são-nos dadas por Bento XVI no último volume da sua Trilogia sobre Jesus de Nazaré, dedicado à infância de Jesus. Centra-nos nas duas versões da genealogia: em Mateus (1, 1-17) e em Lucas (3, 23-38). Em ambas deparamos com uma mudança radical quando interrompem a linhagem patriarcal, com origem em Abraão, “porque Jesus não foi gerado por José, mas realmente nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo”. Nenhuma das genealogias se detém na origem patriarcal, na promessa a Abraão, mas, a de Mateus “está determinada totalmente pela figura de David, o rei a quem fora feita a promessa dum reino eterno (Sm 7, 16)”. A linhagem dos varões está vinculada à história do mundo, diz-nos Bento XVI, “e, apesar disso, no fim de contas é em Maria, a Virgem humilde de Nazaré, que acontece um novo início: recomeça de modo novo o ser humano”. Ou seja, temos uma nova proveniência – ontológica – pela concepção virginal de Maria.

Neste terceiro volume da Trilogia encontramos ainda uma pista importante na genealogia de São Mateus, que refere o nome de quatro mulheres: Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias (Betsabé), nenhuma delas era judia. Pelo contrário, três delas tiveram uma história de vida conotada com o pecado, prostituição e adultério. Bento XVI dá destaque a estas mulheres para mostrar que é por intermédio delas que “entra na genealogia de Jesus o mundo dos gentios: torna-se visível que a sua missão se destina a judeus e pagãos”. Também o rei David, de cuja linhagem nasce Jesus de Nazaré, cometeu adultério e homicídio. É precisamente nestas genealogias onde Maria adquire um particular relevo, pois ela é protagonista na viragem do mundo Antigo para a nova criação. É aqui que os teólogos de matriz patrística inscrevem a Igreja, ou seja, Maria está acima do ministério de Pedro pois é a realidade primordial, a forma perfeita e inigualável da Igreja (Cf. Ef 5, 27) e a única isenta de corrupção. A organização institucional, com base nos Doze Apóstolos, é posterior e está relacionada com a dimensão histórica da salvação, por isso mesmo, é passível de imperfeições. É também em Maria onde está ancorado o Papa Francisco e a hostilidade ao seu ministério resume-se na dificuldade de muitos em aceitar o alargamento da salvação a todos os povos.

Desde os primeiros séculos do Cristianismo que se tem mantido uma vertente patriarcal, filiada na promessa e na prosperidade de Abraão, permeada de gnosticismo. Formam uma elite que desde o século II querem afastar da salvação todos aqueles que estão unidos à linhagem de Maria. O que contradiz a inclusão dos gentios revelada no Novo Testamento: “os gentios são admitidos à mesma herança, membros do mesmo corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho” (Ef 3, 6). Francisco denunciou-os abertamente na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal A Alegria do Evangelho, (nn. 93-97) e continua a fazer-lhes frente com o mesmo vigor e doutrina de Ireneu de Lyon, apenas para citar um exemplo. A Incarnação virginal sempre foi um espinho na História da humanidade, está na origem das primeiras heresias e foi debatida arduamente nos primeiros concílios. Mas Francisco reitera a teologia de Von Balthasar, que afirma: “Esta feminilidade da Igreja é a realidade englobante, enquanto o ministério assegurado pelos apóstolos e seus sucessores masculinos é uma mera função no interior desta realidade englobante”. Por este motivo, não se podem fechar os canais da graça como, por exemplo, o sinal da bênção quando é pedido, mesmo que seja pela mais desprezível das criaturas. Porque só Maria, a Igreja Imaculada, tem a perspectiva da realidade englobante que abre o acesso também aos pagãos.

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