O Coração Ainda Bate. O sobressalto

Inês Meneses escreve sobre a difícil tarefa de amar.

Acabei o ano a rever “A Balada de Adam Henry”, a partir do livro de Ian McEwan, e voltei a comover-me. Há naquela mulher intrépida uma entrega súbita e interiormente desmedida perante aquilo que seria, na sua vida, apenas mais um caso enquanto juíza. A compaixão por Adam mistura-se com uma materna doçura (roubo aqui o título a um outro livro, o de Possidónio Cachapa) e acaba mesmo nesse sentimento, às vezes pouco inteligível, chamado paixão. Era disto que vos queria falar no início de 2024. O amor e a paixão como sobressalto para as nossas vidas.

Duas pessoas que se dizem apaixonadas podem estar presas num nevoeiro cerrado que não lhes permite ver mais nada, nem a solução para os seus eventuais problemas, e, no entanto, não raras vezes, mantêm-se ali. Às vezes, só querem tentar perceber se há uma saída, uma placa que lhes diga claramente onde podem e quando podem escapar dali ilesos, garantindo a continuidade do amor, e não conseguem. Talvez porque a paixão seja o sentimento mais capaz de nos abalroar a sensatez. Não há nada de errado nisto: mil vezes presos nesse nevoeiro cerrado, a nunca ter sentido o que é a insensatez.

Os amantes – gosto da palavra que não remete propriamente para a clandestinidade, mas até podia – ficam num labirinto onde tentam ver o fim de tudo que normalmente é o início da vida deles sem obstáculos. E, muitas vezes, o fim dos obstáculos também pode ser o fim do amor que se susteve nas dificuldades que surgiam, na impossibilidade constante, no fracasso de tudo à sua volta, menos desse amor que se alimentava de um mundo em permanente combate.

Nunca foram eles contra o mundo, mas o mundo a urdir uma teia onde eles eram a presa mais fácil. Os amantes podem ser fortes e ao mesmo tempo tão vulneráveis que se deixam apanhar. Os amantes pensam que têm que parar, descansar, dormir, voltar a alimentar-se, mas, na verdade, é contra tudo isso que continuam a lutar, porque isso lhes garante a continuidade do amor. Aqui misturo amor e paixão. Longe de ser o amor que se instala depois, sonolento e preguiçoso.

Quando Adam, o miúdo agora com 18 anos, procura Fiona, a juíza que ordenou que fosse feita a transfusão de sangue que o poderia salvar, e invoca a poesia, as canções, as perguntas que não têm resposta, e ela fica a olhar para ele sem capacidade nem permissão (moral e ética) para lhe dizer o que ele queria ouvir, parece que o mundo desaba: o deles e o nosso. Não há caminho algum para que aquele sentimento, ainda por explicar, se transformasse num amor vivido, mas ele está lá. Quando, perante um desfecho trágico, o marido de Fiona lhe pergunta ‘tu apaixonaste-te por ele?’, ela cai para dentro dela. Afoga-se entre lágrimas e dor. A cena é tão pungente que agora mesmo quero voltar ao filme. Um amor que nunca poderia ser vivido, em que uma das partes, seguramente, nunca se permitiria a vivê-lo e, no entanto, se me perguntarem o que é que se passou ali, direi – o amor. O amor que não conhece explicações, saídas, perguntas ou respostas. O amor que vive debaixo de um nevoeiro cerrado, meses, anos, às vezes décadas já só na nossa memória.

O amor pode nunca parecer possível aos olhos de quem o vê de fora e até por dentro. O amor pode ser um novelo cheio de nós cegos que pensamos nunca ir desenvencilhar. Mas é amor, até quando, depois do nevoeiro, tivermos de falar dele no passado.

Felizes, ainda assim, as coisas que nos desmoronam, para depois nos contarem ainda mais completos. Um sobressalto. Talvez depois um clarão.

O coração ainda bate.

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