O essencial de uma boca é o sorriso

Inspirou e beberricou a bebida, expôs o rosto ao prato fumegante e, antes que arrefecesse, começou a comer, sorrindo.

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"Quando foi a última vez que almoçou sozinho num jardim ladeado por confusão e betão em todos os lados menos um?" João da Silva
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“O essencial de uma boca é o sorriso, e por isso estou sempre à espera dele.”
Pablo d’Ors, Espanto e Encantamento – memórias de um vigilante de museu

Observei um homem a almoçar sozinho num jardim em forma de retângulo ladeado por uma via rápida, um grande supermercado, uma autoestrada e um seminário. Assim mesmo, quatro lados bem definidos. Achei o quadro tão interessante que fiquei a observar o homem durante largos minutos — basicamente durante o tempo que durou a refeição e ainda um pouco mais.

Um homem a almoçar sozinho (excluindo este observador incógnito e a passarada) num jardim retangular urbano ladeado por confusão e betão em todos os lados menos um. Nada de mais. Nada de mais? Quando foi a última vez que almoçou sozinho num jardim ladeado por confusão e betão em todos os lados menos um? Alguma vez o fez? Eu não. E as características do jardim são só o início da história.

Antes de chegar ao momento de levar o garfo à boca, o homem procedeu a um ritual meticuloso: estendeu um individual colorido em cima da mesa, dispôs o prato raso ao centro e uma taça por cima, o garfo de um lado, a faca e a colher do outro e uma colher de sobremesa no topo. A taça mais pequena e o copo ficaram fora do individual. Abriu uma marmita e encheu a taça de sopa. Colherada atrás de colherada, comeu-a sem pressa, mas sem pausa.

Após finalizar, colocou a taça numa lancheira que tirou da mochila (presumo que exclusivamente para a loiça suja) e serviu, com reverência, o prato principal. Batatas (tiradas uma a uma com uma colher de uma outra marmita) e uns pedaços de algo mais escuro (quase de certeza carne e cenouras, tudo envolto num molho espesso). Se tivesse de apostar, diria tratar-se de um guisado. Por fim, verteu, a partir de um termo, um líquido esverdeado e fumegante para o copo (chá). Inspirou e beberricou a bebida, expôs o rosto ao prato fumegante e, antes que arrefecesse, começou a comer, sorrindo.

“Sorri para a comida ou para si próprio? Para ambos? Talvez para uma lembrança. Uma lembrança de si próprio ou de alguém? Se fosse o segundo caso, o homem já não estaria sozinho. Quando pensamos em alguém, sobretudo se esse alguém nos trouxer aconchego ou nos fizer sorrir, já não estamos sozinhos, não é?”, interroguei-me.

Conclui que o mais provável era que o sorriso fosse para a comida. O homem sorria de satisfação e de regozijo pela saborosa refeição que confecionara e que o aquecia depois de uma manhã atarefada na oficina — o homem vestia um macacão azul, tal e qual o do senhor Joaquim da oficina onde costumo levar o carro à revisão. Até as manchas de óleo me pareceram iguais. Alto lá: “E se foi alguém que lhe confecionou a refeição?”, voltei a interpelar-me. A ter sido assim, não estava sozinho, pois não?

— Do que ou para quem sorria o homem? —, interrogo-me ainda e com insistência. Não que considere haver algo de errado em sorrir sozinho. Não há. Mas gostava de saber. “Deixa as pessoas em paz, pá. Mete-te na tua vida”, diz-me um amigo quando lhe conto da minha constante curiosidade em querer conhecer (às vezes adivinhar) o que as pessoas pensam e sentem.

“Sorrir sozinho é transcender a solidão. É descobrir riqueza no silêncio, alegria na simplicidade, é bastar-se a si próprio”, elaborei, ao ver, após a última garfada, o homem colocar as mãos na nuca, arquear as costas e sorrir para o céu, como se o sorriso fosse o essencial da sua existência.

Quando cheguei a casa, abri uma página virgem do meu dicionário de sentidos e escrevi:

Sorriso: antítese do vazio; declaração de que a verdadeira felicidade reside nos momentos intimamente humanos, nos pequenos prazeres e na capacidade de encontrar alegria nas atividades mais simples; é pela boca que enchemos o estômago, mas é com o sorriso que abraçamos a alma, seja um sorriso para algo ou alguém ou, tão simplesmente, para nós próprios.

“Quando olhamos para alguma coisa durante muito tempo, seja o que for, acabamos por descobrir a sua fealdade e insignificância, ou inclusivamente o seu ridículo. Ora bem, se se olhar durante muito mais tempo para esse mesmo objeto ou pessoa, essa insignificância ou fealdade, esse ridículo inevitável, transforma-se misteriosamente em beleza e sentido. (…) Porque o segredo é este: não nos devemos cansar de olhar; não devemos retirar o olhar quando se descobre a fealdade. A beleza só chega para os que a esperam.”
Pablo d’Ors, Espanto e Encantamento – memórias de um vigilante de museu


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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