Manifesto (me) pela Natureza

Quão maravilhoso era estar na rua, conhecer os vizinhos, combinar encontros sem alertas nem certezas de que os amigos iriam aparecer, e fingir que não escutávamos os pais a chamarem para jantar?

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Atualmente, defendemos uma vida com mais natureza, uma infância com mais exterior e, neste desejo de mudança, recordamos com carinho as nossas brincadeiras lá fora. Quão maravilhoso era estar na rua, conhecer os vizinhos, combinar encontros sem alertas, nem certezas de que os amigos iriam aparecer, e fingir que não escutávamos os pais a chamarem para almoçar ou jantar. Temos saudades das tardes com os amigos, das conversas nos muros da escola e o lanche na casa daquela amiga que tinha a mãe sempre disposta a receber mais dois ou três. Sim, temos: há mais como eu, possivelmente a última geração do brincar livremente e onde o outdoor não era assunto, nem fazíamos ideia de que iríamos ser os últimos com uma infância livre.

A rua cheia de vida, as árvores com folhas a cair por estarmos debruçados nos ramos, dedos pegajosos dos pêssegos do vizinho ou das nêsperas na casa da avó. O quintal do avô estava sempre cheio, pela natureza e por nós. Barulhentos, escondidos entre os legumes, a fruta e as galinhas. Éramos um só. Nós e a natureza. Os meses passavam e sentíamos o cheiro da chuva, a chegada do outono, já com saudades do verão e dos pés descalços. Mas tudo estava muito repleto de nós, a rua e tudo o que há lá fora. Tínhamos todos a vida preenchida, e às vezes aborrecida, mas que se transformou numa vida de memórias que, hoje, são quase inexistentes em muitas das nossas crianças e jovens.

Nesta minha viagem de promover o ar livre e o contacto com a natureza, tenho conhecido muitas pessoas e, há pouco tempo, uma disse-me que enquanto criança nunca brincou na rua. Num outro dia, uma mãe partilhou que leva a filha a passear pela floresta ou jardim, mas que não conhece vizinhos e não a deixa brincar na rua. Outros partilham a ausência de tempo ou uma vida demasiado agitada. Outros simplesmente não têm qualquer relação fora de paredes.

Mas hoje… Hoje, manifesto-me pela natureza. Hoje manifesto-me pelas árvores por trepar, pelas ruas por brincar, pela praia por correr e pelos jardins vazios. Hoje manifesto-me por aqueles que não têm voz.

Imaginem-se do ponto de vista de um jardim, de um lago, de uma árvore ou de um chapim, habituados à presença de crianças divertidas e de jovens a namorar às escondidas. A magia do chapinhar e saltitar das rochas lançadas o mais longe possível num riacho; o marcar o nosso amor na areia com promessas de um “para sempre”; o sentir do balançar de uma criança nos ramos e ouvi-la rir porque conseguiu chegar mais alto. Ser o reflexo agitado nas águas de uma lagoa das melhores amigas, um refúgio escondido para ler um livro ou um banco de jardim para fazer os trabalhos de casa.

Conseguem imaginar o vazio que foi crescendo ano após ano, para todos aqueles seres que estavam à nossa espera? A solidão de não conseguir oferecer memórias com cheiro, cores e texturas. Acredito que, se a natureza se pudesse manifestar, gritaria bem alto por companhia, por querer fazer parte da nossa viagem, por querer ser parte de nós. Para quem cantará o chapim? Para onde correrá o rio? Para onde vai o eco da nossa rua ou as poças da chuva? O chapim vai continuar a cantar para os seus, mas nós vamos esquecer o seu chilrear. O rio continuará a correr, mas as nossas barragens temporárias, feitas de troncos e rochas, vão ficar por fazer. A nossa rua perde o seu tom e as nossas galochas ficam por comprar.

Hoje, manifesto-me pela natureza porque ela necessita de nós e nós dela. A biologia e a história que nos ligam são vínculos genéticos, estar na natureza é uma das nossas necessidades mais básicas. Sim, nós precisamos mais dela, verdade, mas e se passássemos a ter uma relação de simbiose? Uma relação biológica vantajosa para todos, todos os dias, para sempre. Conseguem imaginar? Imagino, incansavelmente, todos os dias, formas de devolver o amor da humanidade à natureza.

Sabemos que cuidamos do que amamos, dos filhos, do nosso gato, da família ou das nossas plantas. Somos seres sensíveis a uma paisagem estonteante que nos faz chorar, viajamos com o cheiro do oceano ou da terra molhada, sentimos uma emoção desgarrada e feliz num piquenique em família ou na leitura de uma história num relvado sem fim. Se todos cuidarmos, a natureza cuidará. Conseguiremos, nós, cuidar mais? Acredito genuinamente que sim. Preciso que seja verdade, por mim, por todos.

Gostava que todos nos manifestássemos pela natureza, que deixássemos o vínculo virtual e fossemos à varanda ver os netos andar de bicicleta, auxiliar na horta comunitária, combinar um passeio na floresta ou ver o mar num sábado de manhã. Devolver, dia após dia, as nossas pegadas, o nosso toque, a nossa presença. Sim, devolver, mas de forma gentil, suave, como quando pisamos um tapete novo pela primeira vez. Gostava que voltássemos à casa dos tios, à terra dos avós, à primeira vez na Serra da Estrela e as férias de verão do nosso primeiro amor. Sabem porquê? É lá que mora o nosso manifesto pela natureza, as nossas relações e ligações, e uma vida que, pelo menos na nossa memória, não tinha pressa de acontecer.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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