Ainda não acreditam no Pai Natal?

Podemos estar descansados: não somos consumistas avarentos e vis. Somos simplesmente agentes do nosso tempo e afeiçoámo-nos às compras online.

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Megafone P3: Ainda não acreditam no Pai Natal? Honey Fangs/Unsplash
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Ao longe, o autocarro deseja às pessoas que o esperam na paragem, encharcada e fria, um feliz Natal. Entretanto, ele chega e, no momento em que as portas se abrem, recebo um e-mail. O meu rosto desbloqueia o telemóvel e leio, desinteressado:

"Olá, João. Confirmamos que o seu pedido já foi entregue na morada indicada. Agradecemos a sua confiança."

Esboço um sorriso de alívio e subo triunfante para o 58: menos uma chatice. São estas as nossas conquistas em 2023, quase 2024 — ficamos descansados de cada vez que uma encomenda chega ao destino por nós definido. Realmente, se tivesse existido um qualquer tipo de obstáculo a esta entrega, tinha um problema por resolver. Seria pequeno e relativo, mas seria um problema.

O tema é fútil e envergonha, ainda que tenha bom fundo. Felizmente, continuamos a oferecer presentes uns aos outros, mas deixámos de ir às lojas com tanta frequência; o e-commerce venceu-nos e é fácil e cómodo perceber como e porquê. Gostamos das pessoas na mesma medida, mas já não nos mexemos tanto por elas — preferimos, porque nos é mais conveniente, que sejam as transportadoras a tratar dos nossos presentes de Natal.

Antes, ficávamos horas dentro de centros comerciais. Hoje, e desde a última década, passamos temporadas atrás do computador, ou com o telemóvel nas mãos, em busca dos presentes certos para as pessoas certas. Não há mal nenhum nisso: a nossa atenção pelos outros não diminuiu, adaptou-se.

Não são estes os comportamentos que fazem de nós seres egoístas, parecidos com o angustiado e imortal Ebenezer Scrooge. Podemos estar descansados: não somos consumistas avarentos e vis. Somos simplesmente agentes do nosso tempo e afeiçoámo-nos às compras online.

A capa da New Yorker, da semana de 11 de Dezembro, retrata bem uma parte desta realidade. A ilustração, da autoria de Barry Blitt, mostra-nos um simples e indistinto estafeta a realizar o seu trabalho. Porém, parece-nos um profissional particularmente esforçado, já que o vemos no telhado nevado de uma casa, perto de uma chaminé, como se nada fosse. No Instagram, as intenções do cartoonista foram compreendidas:

Sad but true ("Triste, mas é verdade", em português);

Beautiful. They work so hard and deserve it. Modern-day Santas ("Lindo, trabalham tanto e merecem. Os 'Pai Natal' dos dias modernos", em português).

Neste Pai Natal, que é ubíquo e apresenta tantas fardas diferentes, todos acreditamos — e confiamos. Vemo-lo todos os dias nas estradas e nos passeios da nossa rotina, mas, porque o vemos com tanta frequência, reflectimos pouco sobre o seu papel nas sociedades contemporâneas e no nosso dia-a-dia.

Na prática, os estafetas ganham a vida poupando o nosso tempo. No fundo, executam as tarefas para as quais temos cada vez menos paciência e tempo. O pior é que precisei que me tivessem feito um desenho para perceber isto.

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A capa da The New Yorker DR
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