Por quem os sinos tocam

Mas há teimosia, há esperança, por isso, já se sonha com a Primavera.

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Por volta das três da manhã, o Ulme foi para o quarto. O Borja mastigava com alguma dificuldade um bocado de pão. Está duro, disse. Está como a vida, acrescentou a Alexandra. Nunca mais é mais sábado, nunca mais é Verão, nunca mais chegamos ao Sol da nossa canção. Até rimou, comentou o Borja. Como é o Verão onde vivias? No Verão, disse a Alexandra, as lagartixas pousam nos muros e as carnes inchadas dos frutos abrem rachas ao sol, explodem, e deitam fora as sementes na ponta da língua, na ponta dos dedos, nas flores, entre as pernas. Os frutos caem no chão rendidos à boca que se aproxima. Tudo cheira a terra, no Verão, até os mamilos e as borboletas. E no Inverno?, perguntou o Borja. No Inverno, disse ela, a vontade anda para trás. O azeite cristaliza. Tudo se arrepende. A Natureza recolhe-se com frio. Mas há teimosia, há esperança, por isso, já se sonha com a Primavera. Enchem-se chouriços e paios e morcelas. Em Janeiro bebe-se nos lagares com o cheiro do bagaço, do medronho e do tinto a engordar o ar, a fazê-lo pesado. Ouvem-se os gritos dos porcos. O chão de cimento ou de terra está sempre frio, os cães dormem juntos para se aquecerem até que alguém tropece neles ou os pontapeie para fora do lagar. Nessas aldeias a roupa cheira a naftalina e as ruas cheiram aos animais. A única coisa que interrompe o cheiro dos estábulos é o badalar dos sinos, e nessa altura fica tudo limpo, durante muito pouco tempo, durante os segundos em que soam. Quando os sinos tocam, não se sente o cheiro. É Deus. Não acredito em Deus, disse o Borja, isso não existe. Então, replicou a Alexandra, digamos de outro modo: quando os sinos tocam, ouve-se a esperança do ser humano em algo mais. Interrompe-se a vida dura, como o pão de cada dia, para nos elevarmos, por breves instantes, ao único céu que temos à disposição: ao sonho, à altitude de uma vida melhor. Ora-sus.

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