O Coração Ainda Bate. O nosso silêncio

Inês Meneses fala da gestão do silêncio e das palavras a mais.

Dizia-me o psiquiatra Daniel Sampaio sobre a sábia manutenção do amor a dois: não trazer para casa a conversa exaustiva e detalhada do que se passou durante o dia de cada um. Anuí em silêncio.

Percebi, com clareza, esse desgaste do que sobra do quotidiano e se arrasta connosco até à mesa de jantar, altura em que devíamos apenas falar do que nos mantém aqui despertos para a vida.

Muitas vezes, vi gente a entrar numa conversa que só fazia sentido aos próprios, desgastando o amor com queixumes, relatos de gabinete, o dia consumido pela pequena intriga. O amor tem de estar a salvo disto. Há dias em que precisamos de um colete à prova das palavras que desgastam o amor. São muitas e nós não somos parcimoniosos na altura de as usar.

Durante muito tempo, observei, sobretudo, os homens em silêncio fazendo de conta de que ouviam o que as mulheres lhes contavam. Eu, que sempre tive nos meus olhos um diário, guardava tudo o que via, e muito cedo me apercebi desse lado indiferente, quase desdenhoso, dos homens em relação à conversa contínua das mulheres. Seguia os olhos deles, que já estavam longe, fazendo parecer que continuavam ali presentes.

As mulheres falam mais? Algumas falam. Muitos homens também. Quando muitas mulheres falavam dessa corrosão dos dias, estavam, naturalmente, a dar voz a um vazio que receavam que se instalasse: à mesa, na cama, na casa de banho, na garagem do prédio. Insisto na ideia de que temos medo do eco que o silêncio nos devolve. Falamos como quem se entope de comida mesmo depois da fome saciada.

Hoje, vejo muitas mulheres que escutam os seus pares nessa conversa miudinha que nada acrescenta a não ser ruído à sala, e também elas já fazem de conta de que os ouvem. Pensam nas mil e uma coisas que têm para fazer, que sonham fazer e que, às vezes, ficaram por fazer, enquanto os seus maridos discorrem sobre os resultados da empresa, mais um ano aquém do esperado ou a mensalidade do ginásio que já não se justifica. As mulheres não ganharam só voz para se defender: deixaram de recear ter a mesma audácia que os homens têm. Tem sido bom seguir esse caminho.

Numa relação, nem tudo se deve contar. Não precisamos da validação de um terapeuta familiar para perceber isso (embora seja fundamental ouvi-lo). Esse tempo, em que as mulheres corriam a contar aos maridos o que se tinha passado naquele dia (como quem presta contas ao seu superior), já lá vai. Ou, melhor dizendo, está a diluir-se. As mulheres contavam por receio. As nossas mães seguiam uma cartilha do amor resignado que nunca viu rebelião. A cartilha poucas vezes foi rasgada. A sociedade e o seu julgamento em coro não permitiam que as mulheres agissem de outra forma. Contava-se tudo de tudo, até eles não ouvirem, até eles organizarem o seu dia, as suas actividades pouco claras - tudo o que nunca contaram às suas mulheres. Uma outra vida se desenhava enquanto elas discorriam sobre mais um dia.

Não, não devemos trazer para a mesa ou para a cama o acessório. O amor precisa de solidez e não do somatório de relatos inconsequentes. O silêncio faz-nos bem. No silêncio pode desenhar-se a nossa liberdade. Ninguém mora no nosso silêncio.

O coração ainda bate.

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