Lisboa das castanhas

“O homem das castanhas está na esquina do Rossio ou do Chiado. São quentes e boas. Só é preciso comprar e levar mais calor para casa. Lisboa ainda pode ser o que era”, escreve a leitora Goreti Catorze

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Maria Goreti Catorze
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É um dado adquirido que Lisboa é uma cidade do Sudoeste da Europa, propensa à beleza da Primavera e ao calor do Verão; que se tornou famosa pelos entardeceres luminosos (ah!, a luz incomparável de Lisboa...); que as noites estivais são ventosas e desagradáveis. Mas até este último senão, particularmente sensível para os apreciadores de esplanadas nocturnas, o aquecimento global veio amenizar. Dizem os entendidos que deriva do excesso de dióxido de carbono produzido pelos humanos.

Não duvido, mas a verdade é que não existem mundos ou galáxias imutáveis. Existem homens sapiens sapiens onde antes existiram dinossauros. Cada um deixa uma pegada diferente, uns porque não sabiam pensar, outros porque pensam de mais e inventaram a roda, o fogo e os aviões. Isso é bom? É, mas poluiu o planeta e ele já não é como era no tempo dos excelentíssimos dinossauros.

Isto tudo a propósito das variações climáticas de Lisboa. A mesma que sofreu um maremoto mais imprevisível que o efeito de estufa. Que teve um escritor boémio, amante de metáforas irónicas como esta dum certo dinossauro excelentíssimo. Refiro-me claro, ao José Cardoso Pires, esse "integrado marginal", magnificamente biografado por Bruno Vieira Amaral.

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Metáforas à parte, voltemos ao clima lisboeta. Estamos no Outono. Atravesso a cidade pela Avenida Infante Santo, que passa na Estrela, depois no Rato e no Marquês de Pombal ou no Príncipe Real, depende da bifurcação que nos aprouver escolher. A noite chega cedo nesta altura do ano, apanhando os transeuntes desprevenidos no bulício do regresso a casa.

Olho as folhas das tílias debruadas a castanho. As folhas das tílias são assim, não mudam de cor por igual, como os lódãos bastardos. Ficam castanhas no rebordo e esse tom escuro vai avançando em direcção ao centro. Longe está o tempo da floração, quando perfumam a atmosfera com o seu odor inconfundível. Sei que este é o início da longa travessia que termina no equinócio da Primavera, anunciada aqui pelas flores rosa das olaias.

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Maria Goreti Catorze

A chuva não pára de cair, deixa um brilho espelhado no chão de calcário preto e branco. Os turistas desapareceram por momentos, as ruas da Baixa estão desertas como o foram nos anos de 1980, quando Lisboa era menos aperaltada, mas mais inconfundível de tão genuína. Não era cosmopolita como agora, parecida com tantas outras cidades da Europa. Que diria Fernando Pessoa se aqui voltasse?

A placa da firma onde trabalhou está afixada no prédio ao fundo da Rua da Prata, juntamente com o código QR que dá acesso ao percurso pessoano. A mesma rua que aos poucos vai perdendo a patine do passado. As cidades são assim mesmo, reinventam-se para sobreviver, nem que para isso tenham de vender a alma e encontrar outra diferente. Por enquanto o velho fado lisboeta continua a ter actualidade: o homem (ou a mulher...) das castanhas está lá, na esquina do Rossio ou do Chiado. São quentes e boas. Só é preciso comprar e levar mais calor para casa. Lisboa, afinal, ainda pode ser o que era. Tudo depende do olhar e da fantasia.

Maria Goreti Catorze (texto e fotos)

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