Tarde de chuva

Nunca tinham estado tão juntos. Esse trajecto, que não demorou mais de vinte minutos, foi uma confirmação de um futuro, aquele braço dado era uma imagem profética, o esboço ainda tosco do porvir.

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Chovia bastante quando a São saiu do trabalho. No momento em que se preparava para correr até casa, tapando a cabeça com o casaco, apareceu o Urso com um guarda-chuva. Atirou o cigarro ao chão com um piparote, cuspiu, cumprimentou-a com um aceno do queixo e um quase-sorriso, depois deu-lhe o braço e acompanhou-a até casa. Nunca tinham estado tão juntos. Esse trajecto, que não demorou mais de vinte minutos, foi uma confirmação de um futuro, aquele braço dado era uma imagem profética, o esboço ainda tosco do porvir: estavam juntos porque haveriam de estar juntos. A ausência do Moisés foi um acontecimento muito triste para a São, que não compreendia o afastamento repentino, onde estará, interrogava-se ela, terei feito algo errado? De qualquer modo, tinha medo dele, de poder ser feliz, de a vida a elevar a esse lugar de alegria apenas para a empurrar das alturas. O destino, se a levava a ver o mar era para lhe roubar alguma coisa, magoá-la com mais força, escarnecendo dos seus sonhos, desfazendo esperanças, levando-lhe a mãe, amigos, brinquedos, enfim, qualquer materialização da felicidade. Também tinha medo do Urso, mas por motivos mais óbvios: por este ser bruto, áspero, rugoso, como tantos outros homens com quem se cruzara, e bem diferente do Moisés (onde é que ele estará, interrogava-se a São, terei feito algo errado? Terei dito alguma coisa de que não gostou? Arranjou outra mais bonita? Menos pobre? Mais esperta?). No entanto, o Urso, sendo como todos os outros homens que ela conhecia, tinha algo muito próprio, a inevitável ecceidade que nos torna peculiares: a do Urso eram os seus longos silêncios, em que gritava sem abrir a boca, sem articular qualquer som. Porém, quando falava, as frases soavam a ordens, mesmo nas ocasiões — não eram raras — em que se atrapalhava com o discurso ou gaguejava, tropeçando no significado das palavras, enrolando-se na sintaxe.

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