RNH: “investimento” que impede o acesso à habitação não nos serve

O que o regime dos Residentes Não Habituais fez (até mais do que os “vistos gold”) foi virar o mercado da habitação para o poder aquisitivo externo, muito superior ao dos portugueses.

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O regime fiscal dos Residentes Não Habituais (RNH) surgiu em Portugal em 2009. Trabalhadores ou pensionistas, com rendimentos elevados e a tributação consequente nos seus países, adquirindo uma morada em Portugal através da compra ou arrendamento de uma casa, habilitam-se a este regime e, ao abrigo dos acordos que evitam a dupla tributação, escolhem ser tributados em Portugal. Por sua vez, o Governo opta por lhes aplicar uma taxa de IRS muito mais baixa do que a dos seus países de origem aos rendimentos auferidos fora ou em Portugal, durante dez anos consecutivos. Actualmente, as taxas fixas aqui aplicadas aos RNH são 20% de IRS sobre os rendimentos das categorias A (trabalho por conta de outrem) e B (trabalho independente). Já os reformados pagam uma taxa de 10% de IRS sobre as suas pensões.

Acresce que para os reformados a taxa fixa de 10% para pensões foi estabelecida apenas em 2020, antes disso os pensionistas que adquiriam este estatuto estavam isentos de qualquer tributação, ou seja, pagavam zero. Ao mesmo tempo estas pessoas têm de passar cerca de 140 dias no país, no entanto nem sempre é possível verificar isso (por exemplo, o caso dos cidadãos europeus).

Governo, empresários, gestores e quadros políticos defendem este programa dizendo que promove o investimento. Resta saber que tipo de investimento é este e o que é que gera na sociedade. Alguém acredita que os pensionistas, os mais beneficiados com este regime, que nos seus países pagariam impostos, na ordem dos 40 ou 50%, vêm para Portugal investir? Criar emprego? Ou vêm antes comprar uma casa ou arrendar, o que lhes basta para deixar de pagar impostos no seu país? Estas mesmas pessoas têm acesso a todos os serviços e infraestruturas públicas e pagam muito menos em impostos do que quem vive e trabalha em Portugal.

Este é um sistema injusto para quem aqui trabalha e desconta. Injusto, porque a maioria vem sobretudo para não pagar impostos, e o seu “investimento” é sobretudo em casas e, isto, vem aumentar brutalmente o preço da habitação, quer seja no mercado de compra quer seja no de arrendamento, ajudando a agigantar a crise de habitação, a exclusão de uma parte crescente da sociedade que deixa de ter acesso à habitação ou que paga um valor cada vez mais insuportável, em face do seu rendimento e despesas essenciais.

O que o regime dos RNH fez (e de uma forma até mais expressiva, pelos números, do que os "vistos gold", que concorrem para o mesmo problema) foi virar o mercado da habitação para o poder aquisitivo externo que nada tem que ver com a realidade portuguesa de quem aqui vive e trabalha.

As primeiras emissões de liquidações de IRS de RNH aconteceram em 2012. Os preços da habitação começam a subir de forma ininterrupta a partir de 2013 e explodem nos anos seguintes. O geógrafo Nuno Serra há muito verifica, através de uma análise detalhada e geográfica, a equivalência entre a procura de casas pelos RNH e o aumento dos preços que dispararam para valores que nada têm que ver com os rendimentos em Portugal.

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As manifestações pelo direito à habitação e à justiça climática "Casa para Viver, Planeta para Habitar " decorreram a 30 de Setembro em 24 cidades do país Rui Oliveira

Pode constatar-se no site do Eurostat como os valores da habitação e do arrendamento aumentaram em Portugal a partir de 2013 sem parar e dispararam a partir de 2015, muito acima da média dos restantes países europeus. De acordo com o FMI, Portugal é o 3.º país do mundo com o maior rácio preço da habitação-rendimentos, o que significa que é o terceiro país a nível mundial (e o segundo da União Europeia) onde o preço da habitação está mais longe dos rendimentos, ou seja, onde é preciso um maior número de anos de rendimento familiar para comprar uma casa.

O aumento do custo da habitação está relacionado diretamente com as políticas de “atração de investimento”, um investimento que afinal foi todo para o imobiliário através de "vistos gold", RNH e turistificação, alimentando um tipo de economia que, na verdade, é uma economia de baixo valor acrescentado, paga baixos salários e que pode trazer crescimento do PIB, mas traz para muitos pobreza e aumenta a desigualdade social.

As manifestações Casa para Viver e por uma Vida Justa que tiveram lugar neste ano de 2023 foram muito importantes para começar a pressionar verdadeiramente o Estado, na figura do Governo e dos partidos na Assembleia da República, a tomar medidas efectivas que combatam a crise na habitação e o aumento do custo de vida.

Dois dias depois da segunda manifestação Casa Para Viver, António Costa anunciou o fim do regime dos RNH, admitindo o impacto que este tem no elevado preço da habitação em Portugal. Foi também no âmbito das manifestações que se conseguiu arrancar ao Governo a promessa de acabar totalmente com os "vistos gold" ligados ao imobiliário. Mas sabíamos que tínhamos de ver para crer, os interesses associados ao imobiliário neste país são vastos e a dependência e subserviência dos sucessivos governos é uma realidade.

O sector do capital imobiliário e quem está ao seu serviço, obviamente, organizou-se, e foram múltiplos os artigos de opinião e, imaginamos, as conversas de corredor, almoços e jantares em que o tema terá sido aflorado; redigiu-se um manifesto assinado por personalidades políticas e gestores contestando-se o fim do referido regime. Prontamente, o grupo parlamentar do PS cedeu, alterando a proposta do Orçamento de Estado, dando mais um ano a este regime, ganhando tempo. O que isto significa é que foi dado o tiro de partida para uma corrida ao regime fiscal injusto do RNH, e teremos assim a continuidade do aumento dos preços em 2024 fruto dessa procura estrangeira endinheirada que procura pagar o mínimo de impostos possível, insuflando o preço das nossas casas.

Naturalmente, perante a conjuntura de lobbying, de interesses instalados e de uma economia dependente e subserviente ao sector imobiliário, chama-se “investimento” ao insuflar da bolha imobiliária, à especulação; “investimento” mesmo que este represente o empobrecimento de parte considerável da população. Este modelo de investimento estrangeiro não nos serve, é excludente e insustentável. A organização e a luta de quem tem saído à rua terá de continuar. Já mostrámos que podemos fazer pressão a sério, não podemos parar.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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