Xeiques das arábias

A questão não era tanto encontrar o amor perfeito, de arquétipo aristocrático, era fugir do ferro de engomar, da pobreza e da impotência, da opressão, da violência, de um sono eterno.

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É tudo mentira, mas o que sinto é verdade, repetiu a São. Isso descrevia o seu estado de alma quando estava com o Moisés. O Carlos, que a São não sabia ser conhecido como o Urso, assustava-a, mas isso, achava ela, fazia parte de ser mulher e de ser homem, as primeiras vivem com o susto, os segundos a assustar, umas na cozinha, outros na guerra, umas de joelhos a esfregar o chão, outros a beber, umas a limpar o pó, outros a fazer cimento.

A Esperança continuava a preferir os livros românticos que se vendiam nos quiosques àqueles que o marido aconselhava, gostava especialmente dos que envolviam milionários, magnatas de países exóticos ou aristocratas. A ideia desse homem idealizado até ao ridículo, que aparecia tantas vezes nesses romances resgatando a mulher, era omnipresente. O xeique das arábias ou o actor famoso não era apenas um homem, esse era aquele que habitava a vida de tantas mulheres, o xeique era o sonho de evasão dessas vidas, era uma porta para a rua, para a liberdade. Do mesmo modo, o cavaleiro que salva a princesa do dragão é uma versão mais infantil do mesmo fenómeno. Fechada numa torre ou numa cozinha, dava no mesmo, a ideia não era tanto o surgimento do homem perfeito, um salvador mítico — ainda que essa fosse a sua materialização mais ingénua —, mas
fugir da sua prisão, dos seus constrangimentos e opressões. Um cavaleiro não era só um cavaleiro, era uma revolução, uma libertação. Era um chaimite. A Esperança, claro, não percebia o fascínio desses livros senão na sua forma crua, com o cheiro do dia-a-dia, romântica, mas talvez intuísse, como tantas outras mulheres, que havia ali algo mais: a questão não era tanto encontrar o amor perfeito, de arquétipo aristocrático, era fugir do ferro de engomar, da pobreza e da impotência, da opressão, da violência, de um sono eterno. A São pegou num desses livros para ler. Então?, perguntou a Esperança. É tudo mentira, disse a São, sem concluir a frase com "mas o que sinto é verdade".

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