Devolver o IRS “às famílias”: a fraude social e um erro grave de gestão de Moedas

Dissemo-lo com Medina e dizemo-lo com Moedas na Câmara de Lisboa: a proposta de devolver o IRS “às famílias” é uma fraude do ponto de vista social e um erro grave do ponto de vista de política urbana.

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Continuando uma linha de política criada pela gestão PS/Costa, mantida na gestão PS/Medina, a coligação PSD/CDS, dirigida por Moedas, pretende continuar com o que designa por “devolução do IRS às famílias”, aumentando em 2024 a taxa de devolução para 4,5%, penalizando, assim, o orçamento municipal em cerca de 70 milhões de euros, aproximadamente, um terço do investimento da autarquia (2022).

A opção de devolução do IRS assume em Lisboa uma relevância social e politica particular decorrente das singulares características sociais que o município apresenta. A discussão deste tema não pode, pois, dispensar uma análise das disparidades sociais que marcam a cidade e que distinguem a sua posição na geografia das disparidades sociais no quadro nacional.

Vários estudos sustentam a caracterização de Portugal como um dos países da Europa com níveis mais elevados de disparidades nos rendimentos. Estas disparidades apresentam, contudo, uma geografia muito acidentada no espaço nacional. A Área Metropolitana de Lisboa (AML), com um Coeficiente de Gini (CG) – indicador de desigualdade na distribuição do rendimento que visa sintetizar num único valor a assimetria dessa distribuição, assumindo valores entre zero (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo) de 43,4, destaca-se como a região com os mais elevados níveis de disparidades de rendimentos a nível nacional (o CG de Portugal é 41,6). É, contudo, o município de Lisboa (CG = 49) o município que assume a liderança nas desigualdades de rendimento na AML, com um nível de desigualdade acima do de Cascais e de Oeiras, respetivamente, os segundo e terceiro municípios mais desiguais da região (INE, 2021).

O nível elevado de disparidades de rendimentos em Lisboa tem como fator explicativo fundamental a forte concentração, na capital, de um volumoso segmento populacional ligado a setores económicos e profissionais de poder e de comando, beneficiando de altos e muito altos rendimentos.

De facto, o rendimento acima do qual se encontram os 10% de sujeitos passivos com mais elevados rendimentos em Lisboa, isto é, o percentil 90 (P90), corresponde a um rendimento anual bruto de 46.000 € (por sujeito passivo). Este valor é 72% superior ao mesmo percentil no continente cujo rendimento é 27.000€ (dados de 2020, INE). Distância superior encontra-se ao nível do percentil 80 onde o correspondente rendimento em Lisboa (32.400€) é 75% superior ao rendimento do mesmo percentil no continente (18.400 €).

Estes valores testemunham a posição singular de Lisboa no quadro da distribuição territorial de rendimentos que caracteriza a sociedade portuguesa. Lisboa é, pois, a cidade com grandes disparidades sociais e, fundamentalmente, a cidade com a presença muito significativa de famílias mais abonadas e, de entre estas, de famílias pertencente ao grupo das famílias mais ricas do país. Os dados permitem-nos estimar que os sujeitos passivos que em Lisboa estão acima do P90 integram o grupo dos 4% mais ricos do país (o grupo de topo dos ricos); já os sujeitos passivos que, em Lisboa, estão acima do P80, integram o grupo dos 8% com rendimentos mais elevados de Portugal.

Ora… a questão que faz da proposta de Moedas/PSD-CDS uma proposta obscena do ponto de vista social, nível de obscenidade que é amplificado pela dramática situação social em que se encontram na atual conjuntura os de mais baixos rendimentos em Lisboa, é a seguinte: os grandes beneficiários da “devolução do IRS às famílias” são, justamente, as famílias mais abonadas (acima de P80) e, com particular destaque, o conjunto das famílias que formam o estrato social com os rendimentos de topo (acima de P90). A opção de Moedas penalizará o Orçamento Municipal em cerca de 70 milhões de euros. Os sujeitos passivos que formam os 10% mais ricos de Lisboa (aqueles que pertencem aos 4% mais ricos do país), virão a beneficiar de 55% desta verba (em média, uma devolução de 1.205€ por sujeito passivo). O grupo de sujeitos passivos que formam os 20% com rendimentos mais elevados receberão 75% do total devolvido (com o 9.º decil a receber 425€ por sujeito passivo). Já os 50% com rendimentos mais baixos receberão apenas 3% do IRS a devolver (14€ por sujeito passivo). (ver gráfico anexo)

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A proposta é, pois, uma fraude do ponto de vista social, beneficia os que mais têm, penaliza muito significativamente o orçamento municipal, instrumento fundamental para a prossecução de políticas locais de combate às disparidades e de promoção de uma cidade mais justa. Um claro erro de gestão de Moedas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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