Revolução Inacabada: um semipresidencialismo em falência e um Parlamento por reformar

Se em vez de afetos e cumplicidades reinasse o critério e o rigor de freios e contrapesos, há muito que o nosso Presidente da República teria demitido o primeiro-ministro.

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Prestes a comemorar os 50 anos da democracia em Portugal somos presenteados com acontecimentos políticos que comprovam, mais uma vez, que a nível do equilíbrio de poderes entre órgãos de soberania e da eficácia dos freios e contrapesos entre ambos – os checks and balances , a revolução de 1974 permanece inacabada e a Constituição de 1976 adiada.

Portugal parou, incrédulo, e assistiu em direto à capitulação de um primeiro-ministro. Não sendo ainda claro que o político António Costa tenha capitulado, uma coisa é certa: até nos contornos deste desenlance se demonstra, mais uma vez, a falência do semipresidencialismo em Portugal. E não é de agora! O agonizar do sistema semipresidencialista no nosso país tem vindo a acontecer após a presidência do general Ramalho Eanes, para dar lugar a uma tradição de cumplicidades e alinhamentos entre governos e presidências sobre o brando pretexto, e também perverso, da estabilidade política e governabilidade.

Traumatizados pela instabilidade governativa na década seguinte à revolução, instalou-se a prática presidencial de não confrontar demasiado o Governo com o argumento de se criarem condições de governabilidade e evitar, a todo o custo, grandes confrontos políticos e o risco de instabilidade. Resultado: um Parlamento capturado pelo Governo e a inversão total do que se espera do sistema, mais ainda quando se governa com maioria parlamentar. Perdeu-se o semipresidencialismo, “ganhou-se” um parlamentarismo triunfante e incontestado, há muito blindado pela falácia de que os poderes presidenciais se resumem ao poder de veto e ao poder simbólico das suas intervenções, quando na prática o Presidente tem mais poderes do que aqueles que nos querem fazer crer que tem. Falácia e tragédia operada pelos partidos do arco do poder, como um cartel político desde 1976, que encontraram no rotativismo da governação a forma perfeita para servir uma elite política que tem tido um enorme sucesso na forma como se preserva, mas não regenera.

Foto
Marcelo Rebelo de Sousa e Antonio Costa na festa da Rádio Alfa, a 12 de Junho de 2016 Daniel Rocha

O parlamentarismo vigente é tão dominante que num cenário de maioria absoluta o líder do Governo acaba por deter uma supremacia ao nível legislativo e executivo que viola o espírito da Constituição. O problema não está nas maiorias e no poder político que legitimamente lhe advém. O problema está na automutilação que ao longo de décadas tem caracterizado o comportamento político dos presidentes o órgão de soberania responsável por vigiar o comportamento do Governo, entre outras funções. Muito menos se percebe esta autoimposta rendição de autoridade em períodos de segundos mandatos, e menos ainda quando conquistados com esmagador apoio popular.

Do Presidente da República espera-se que seja atuante, efetivamente exigente, encorajador e inspirador de novas práticas, de nova legislação, e respetiva fiscalização, promotor do combate à desigualdade, da qualidade de vida dos portugueses, da imagem externa do país e da sua reputação. No seu exercício de poder pode, e deve, definir grandes objetivos nacionais que promovam o bom funcionamento das instituições (ex. luta contra a corrupção, reforma do sistema da justiça, descentralização administrativa) e exigir ao primeiro-ministro, quando lhe dá posse, sob pena da dissolução futura da Assembleia da República, a efetiva implementação, monitorização e concretização desses objetivos. Não exercer este poder que o semipresidencialismo legitima é não ativar os checks and balances que, precisamente, contribuem para o bom funcionamento das instituições e mitigam o risco de vergonhas e crises nacionais.

Tudo isto bastaria para legitimar a definição e exigência presidencial de desideratos nacionais de grande alcance temporal e estrutural. Mas existe ainda outro argumento – a manifesta vontade dos cidadãos de que haja mudanças estruturais desta natureza!

Assim se justifica o mote deste texto: uma revolução inacabada e uma Constituição adiada.

Deveria ter sido o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a demitir o primeiro-ministro e não ser este, mais uma vez, a marcar o ritmo da vida política em Portugal. Se em vez de afetos e cumplicidades reinasse o critério e o rigor de freios e contrapesos, há muito que o nosso Presidente da República teria demitido o primeiro-ministro. Fosse pela TAP, fosse pelo aeroporto, fosse pelo lítio, fosse por armas desaparecidas, fosse pelas fardas, fosse pelo pagamento por um pavilhão que não existe, fosse por contratos duvidosos no Ministério da Defesa, fosse pelo nepotismo, conflito de interesses e tráfego de influências, entre outros alertas do irregular funcionamento das instituições, um rigoroso escrutínio da atividade do Governo, uma análise metódica de fatores de risco, consideração éticas e de integridade bem como uma saudável concretização da Constituição teriam há muito resultado na dissolução da Assembleia da República, independentemente de quem fosse (ou de quem seja) o primeiro-ministro e o Presidente da República.

O semipresidencialismo tem de ser resgatado dos afetos com que as relações institucionais se desenvolvem em Portugal. O racionalismo da regra tem de triunfar em detrimento da afetividade e da cumplicidade entre elites que animam a relação entre órgãos de soberania. A afetividade reinante numa sociedade em que a ética do compadrio se sobrepõe à ética do bem comum tem também, tragicamente, o seu semelhante na forma como, ao longo das décadas, governos e presidências se têm relacionado.

O caminho da integridade em Portugal exige um espírito de serviço público tão elevado e inclusivo que os seus protagonistas têm de ser capaz de dizer “não” à sua tribo de origem, ao interesse particular, para abraçarem o bem comum e a ética coletiva. O país precisa de reformas estruturais (ex. sistema de justiça, saúde, educação, Regimento da Assembleia da República, luta contra a corrupção) mas há décadas que estas se mantêm reféns de um tribalismo partidário parlamentar incapaz de produzir os consensos necessários para uma mudança sustentável.

Um semipresidencialismo regular (e não pontual ou brando) pode funcionar como um efetivo órgão de checks and balances, hoje mais necessário do que nunca para promover e exigir um diálogo multipartidário e atuação governativa que resultem na modernização das nossas instituições políticas e macroeconómicas.

Em março teremos novo Governo. Independentemente da composição final da Assembleia da República, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem ainda dois anos para protagonizar o início do resgate do semipresidencialismo que o(a) próximo(a) Presidente terá de continuar. Seria este o seu principal legado para o país...

O autor escreve segundo o novo acordo ortográgico

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