A justiça territorial e a mobilidade das pessoas

A mobilidade de pessoas fora dos grandes espaços urbanos nunca foi uma prioridade. Ficou de fora na construção do Estado Social, longe do protagonismo constitucional da educação, saúde ou habitação.

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No mês de Junho de 2021 realizei uma volta parcial a Portugal em comboio, com troços de ligação entre linhas a terem de ser percorridos em autocarro. É claro que nessa aventura muitas histórias juntei, mas recordo com especial carinho a que se passou no extremo norte da Linha do Minho a caminho de Melgaço.

Deixo por agora de lado a distância que percorri a pé com bagagem entre as duas estações – a ferroviária e a rodoviária –, mas que não esconde a eterna dificuldade lusa em se preocupar com a intermodalidade, gerando romarias de passageiros em trânsito entre modos de transporte, faça chuva, faça vento, venham eles carregados ou ligeiros.

Mas o foco desta nota é o de ter encontrado num terminal encerrado e em obras uma sala de espera improvisada e forrada a horários de autocarros dos mais diversos operadores, relativos a ligações entre lugares do concelho de que nunca naturalmente ouvira falar. Se pensarmos numa meia dúzia de operadores de transporte, para mais de uma dezena de freguesias, com horários de verão e inverno, ou melhor, para o período escolar e fora dele e ainda para os fins de semana, juntando uns mais atualizados e outros já com valor histórico, podemos perceber facilmente como esta decoração de interiores tinha tanto de inesperada como de inútil. Acresce a completa inexistência de informação para ligações interconcelhias, parecendo que estes territórios funcionam apenas em modo ilha.

Assim, sendo impossível encontrar seja o que for nestas paredes, não estando anunciado um número de telefone que oferecesse uma voz amiga e reconfortante do outro lado e não encontrando informação online relevante ao pesquisar no telemóvel, percebi então a postura paciente de dois taxistas estacionados ao lado do terminal rodoviário (já tinha também reparado nos múltiplos cartões que ofereciam este serviço, colados numa das partes da sala). Para chegar a Melgaço não havia, nesta altura, alternativa a este serviço de transporte, que me colocava assim a “apenas” 60 euros de distância.

A moral desta história é simples. Encontrei uma flagrante ausência de informação (física, virtual, telefónica) quer para as deslocações intraconcelhias mas, sobretudo, para as de ligação com outros municípios, numa cidade onde termina o serviço ferroviário e onde há um terminal rodoviário longe do primeiro sem que, ao menos, haja sinalética que indique a ligação pedonal existente entre ambos.

Não quero ser injusto com qualquer município porque este é, na verdade, um retrato generalizado ao resto do país (excetuando Lisboa e Porto). A mobilidade de pessoas fora dos grandes espaços urbanos nunca foi uma prioridade como, aliás, se percebe ao ter ficado de fora na construção do Estado Social, longe do protagonismo constitucional da educação, saúde ou habitação.

A fragilidade na governança do sistema com reflexo direto na má qualidade de frequências, destinos, intermodalidade, custos, bilhética, conforto, informação e um sem-número de outros aspetos tornaram a mobilidade dos cidadãos em Transporte Público Coletivo, um dos maiores bloqueios à justiça e coesão territorial. Na Constituição da República Portuguesa, mesmo que apenas de modo indireto, pode perceber-se a urgência de uma renovada política de mobilidade, quando no seu artigo 13.º (Princípio da igualdade) se consagra, por um lado, que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e que, por outro, “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de..., território de origem...”. Palavras que nos deviam inspirar a fazer melhor.

As consequências da falta de energia política e até técnica e científica depositada neste problema da (i)mobilidade em territórios de baixa densidade, mas que se estende também a muitas áreas urbanas e suburbanas, tem acarretado trágicas consequências sociais e económicas, designadamente impossibilitando o acesso a emprego, ofertas culturais, formação profissional ou a muitas outras necessidades da vida pessoal e familiar.

Até os centros comerciais perceberam a relevância do assunto ao garantirem eles próprios linhas de transporte rodoviário gratuito que fazem a ligação de freguesias e centros urbanos com o local da oferta. Haverá certamente também boas práticas em municípios que ao programarem, por exemplo, uma rica agenda cultural na sede de concelho disponibilizam os meios de transporte necessários para que todos os munícipes possam dela beneficiar. Valia a pena também perceber no que está a resultar o “transporte a pedido”. Mas estes exemplos, revelando uma grande sensibilidade para o problema deveriam, por isso mesmo, merecer mais partilha e reflexão.

É fácil de ver como este sistemático esquecimento contrasta dolorosamente com o glamour emprestado nos últimos anos à mobilidade suave nos grandes centros urbanos...

Existem já as entidades-chave para esta mudança – Autoridades Municipais e Intermunicipais de Transporte, Comissões de Utentes, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, Operadores e Concessionários... – cujas energias e vontades poderiam ser muito melhor aproveitadas e articuladas. Bastaria aliás, que nalguns casos, como os das Autoridades de Transportes, cumprissem a missão que enunciam nos respetivos estatutos e que, de resto, o Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte de Passageiros (publicado em 2015) dá suporte ao fixar que “as Autoridades de Transportes são as entidades públicas com atribuições e competências em matéria de definição dos objetivos estratégicos para a mobilidade, planeamento, organização, exploração, atribuição, investimento, financiamento e fiscalização do serviço público de transporte de passageiros e contratualização e determinação de obrigações de serviço público e de tarifários”.

Façam de passageiros a necessitar de um serviço público de transporte regular ou esporádico e tentem não deixar enredar-se nas páginas online destas entidades no meio de listagens de PDF, de plataformas que não funcionam, de múltiplos links a apontarem para os operadores, ausência de informação em tempo real, ...para perceber como ainda (não) andamos. Só depois de assumirmos a existência de um vasto país em que apenas alguns se conseguem mover poderemos focar-nos na mudança necessária. E pelo que se tem visto e lido percebe-se que, infelizmente, ela ainda vai demorar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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