A angústia da rapariga antes da faca

A faca que se esconde dentro das calças de um homem e que sabes que, um dia, será desembainhada sem piedade, desembrulhada do romantismo postiço para te anavalhar até ao âmago.

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A angústia da rapariga antes da faca Anete Lusina/ Pexels
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A primeira faca que vais conhecer, a primeira de que ouviste falar e que te causa medo — a faca de um homem. A faca que se esconde dentro das calças de um homem e que sabes que, um dia, será desembainhada sem piedade, desembrulhada do romantismo postiço para te anavalhar até ao âmago.

Avós, mães, todas as que te antecederam dir-te-ão que irás sofrer, que a primeira faca irá rasgar-te por dentro, não só a pele e a carne, mas também a credulidade. Dir-te-ão que nunca mais voltarás a ser inteira, tornar-te-ás um fruto arreganhado e talhado unicamente para a boca e para a lâmina de outras facas. Nunca esquecerás a angústia antes da faca, a angústia antes da primeira faca. Ouviste muitas histórias de tortura sobre esse momento exacto em que serás carne numa pândega de luxúria e fecundidade.

Se a dor do primeiro trespasse não te aterroriza, certamente terás medo da faca que pode talhar um fruto dentro ti, logo à primeira navalhada. A faca que esculpe natural e acidentalmente o teu ventre e que te pode levar à outra faca — aquela que desgravida. Nesse primeiro momento, terás então pavor não de uma, mas de duas facas. Duas naifas que servem apenas para exibir o sangue das raparigas. Dois punhais que servem para implantar o medo no coração das raparigas. E, no entanto, a primeira faca nem sempre maltrata, embora a tua ancestralidade te sussurre horrores. A primeira faca nem sempre fará correr sangue e não terás de exibir lençóis manchados para provares que estás diante da primeira talhada, és a única a quem deves as tuas experiências e memórias, rapariga.

És um fruto infinito, por isso, quanto mais talhadas fizeres de ti, mais inteira e incomensurável serás. Nos mitos que perpetuaram mães, avós e irmãs, criados por avôs, pais e irmãos, perdes a honra se não deres o corpo, se não te entregares à faca certa. Como se a honra te fosse apenas emprestada, de maneira que não fosse tua. Aos olhos do mundo, és mais valiosa antes da primeira golpeada, como gado novo e sadio. Tens de enfrentar essa terceira faca, a que desbasta por dentro e por fora de outra forma, a faca que desmoraliza. Terás de enfrentar uma faca aguçada em cada esquina, em cada beco pode estar à tua espera a mais velha forma de assustar e de endireitar as raparigas tidas como tontas, devassas ou sonsas — a língua afiada.

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