No entreato da História

A civilização ocidental treme porque a democracia restou dominada por incompetentes de duvidosa qualidade moral e de péssima qualidade intelectual.

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A História não acabou. Muito antes da prematura sentença de Fukuyama, a inteligência superior de Stefan Zweig já assinalara que “o desfecho da história é incalculável e tão pouco conhece sistemas como a roleta ou qualquer jogo de azar, pois seus sucessos rolam em dimensões tão formidáveis e dentro de tão incríveis possibilidades de coincidência, que nossa razão terrena jamais será capaz de antecipá-la”. Dessa forma, centrando a análise naquilo que podemos ver, o ruir da URSS e a queda do Muro de Berlim marcaram o início de mais de duas décadas de hegemonia americana. Acontece que hegemonia sem lideranças capazes é apenas um hiato de poder transitório que, cedo ou tarde, resta abalado por uma nova conjuntura.

O estopim da mudança foi ataque terrorista ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. A partir deste dia fatídico, o mundo definitivamente mudou frente ao entrechoque crescente de civilizações. De lá para cá, o tempo correu rápido e, diante de tantas graves pulsões geopolíticas, a convicção da paz e da prosperidade está afrontada pelo ímpeto da guerra e suas incertezas de futuro.

Retrospectivamente, o aspecto poroso e celular da Al-Qaeda, somado às dificuldades de localização imediata de Osama bin Laden, levou os Estados Unidos a agirem unilateralmente sobre o Iraque, tendo Saddam Hussein como alvo simbólico. Apesar do sucesso pontual da operação militar americana, o fato alterou o equilíbrio instável do Oriente Médio, além de expor a fragilidade do Conselho de Segurança da ONU como instância de resolução conflitos internacionais. Se era indiscutível o direito de reação americana ao brutal ataque às Torres Gêmeas, a forma como foi implementada, decorrente da posição hegemônica estrutural de então, trouxe importantes consequências geopolíticas.

Vale lembrar que, no amanhecer de 2011, foram verificadas agudas tensões internas na Síria, tendo como foco o regime do presidente Bashar al-Assad, em quadro de violência crescente a envolver o Irã, o Hezbollah e o Estado Islâmico. Aliás, a chamada “Primavera Árabe”, um grito de liberdade contra a opressão reinante, partiu da Tunísia, chegando igualmente ao Egito de Mubarak, à Libia, ao Iêmen e ao Barein. Isso tudo ocorrido após a invasão do Iraque (2003) que levou à execução de Saddam Hussein em 2006. Naturalmente, os eventos narrados podem ser mera coincidência na luta dos povos contra regimes opressivos; todavia, o liame temporal também pode indicar correlação ou causalidade.

Traçada a breve digressão, deixando detalhes e minúcias à competência analítica dos historiadores, exsurge nítida impressão de que a paz mundial – responsável pelo impressionante progresso humano, material e social, capitaneado pelo capitalismo globalizado – está definitivamente em xeque. As ameaças do presente vão além de meras questões políticas ou econômicas, atingindo a essência daquilo que veio se chamar de civilização ocidental. Uma civilização que foi erguida sob a bandeira da liberdade, unindo todos aqueles que elevam a razão como instrumento hábil de busca de soluções pacíficas e entendimentos sérios à prosperidade. Uma civilização que, antes de políticos, formou cidadãos. Uma civilização, portanto, cívica. E que do civismo responsável chegou à democracia política.

Nesse contexto de preservação civilizatória, a vertiginosa decadência da classe política contemporânea – fenômeno global e de larga escala geográfica – urge fazer renascer o intransferível dever de participação cívica nos assuntos do poder. Não podemos mais fazer de conta que não é conosco. Não podemos terceirizar responsabilidades a políticos tacanhos e incapazes de compreender as complexas equações da realidade. A civilização ocidental treme porque a democracia restou dominada por incompetentes de duvidosa qualidade moral e de péssima qualidade intelectual. Aqui, não há milagre: enquanto os cidadãos mais preparados e conscientes se ausentarem dos assuntos públicos relevantes, seguiremos a ser governados por néscios e estúpidos, lidando com assuntos explosivos.

Em página alta do pensamento político, a sabedoria de Henry Kissinger pontuou que “o processo de evolução não se opera tão suavemente ou em tão clara direção como parece à posteridade. O pluralismo do Ocidente foi resultado de centenas de escolhas, cada uma das quais, se tomadas de outra forma, poderiam ter levado a um resultado totalmente diferente”, vindo a concluir que é justamente esse “elemento de escolha que determina o sucesso ou o fracasso”. O dilema das escolhas trágicas novamente ronda o mundo. Os sinais estão aí aos olhos de todos. Ignorar a realidade não fará desaparecer o desarranjo global causado pela pandemia, a invasão da Ucrânia pela Rússia, a tensa situação entre China e Taiwan e, agora, o repugnante ataque terrorista do Hamas sobre Israel.

No final das contas, é a paz mundial que corre o risco de virar um sonho. De violência em violência, entremeado pela incompetência cúmplice e irresponsável das lideranças políticas internacionais, nosso viver está colocado sob um barril de pólvora incandescente, reacendendo ameaças nucleares. Quem pensa que jamais acontecerá desconhece que impérios se erguem em séculos para caírem em instantes destrutivos. O momento é de riscos extremos, mas sempre é tempo para razão superior. Uma razão que defenda, sem concessões, a liberdade humana. Uma razão que não tema o enfrentamento, por todos os meios, do mal absoluto. Uma razão que repudia o terrorismo. Uma razão sem ódio. Uma razão, enfim, que fale com firmeza e não vacile em dizer a verdade.

Ou será que levaremos o legado de Churchill ao pó?

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