A cidade é que é

Ficava em casa expectante, a olhar pela janela, normalmente, a ouvir rádio — fados, notícias e folhetins radiofónicos —, esperando que o filho viesse bem-disposto, coisa que raramente acontecia.

Ouça este artigo
00:00
02:00

O Urso entrou em casa e bateu com a mão na mesa. O que é que se passa?, perguntou o pai, ajeitando-se na cadeira de rodas. O Severo, cujos passos eram para o Carlos, antes de ser o Urso, um prelúdio de lágrimas, já não dava passos, depois de um acidente na serração. Agora era ele que ficava em casa expectante, a olhar pela janela, normalmente, a ouvir rádio — fados, notícias e folhetins radiofónicos —, esperando que o filho viesse bem-disposto, coisa que raramente acontecia. O rosto do Urso, engelhado por um rancor constante, virou-se para o pai, e, depois, sem responder, para a janela. A telefonia, ao fundo, construía a banda sonora, a marcha lenta dos dias, pautados com anúncios a arroz e a seguros e a sabonetes. O Carlos voltou a bater com a mão na mesa. O Severo assustou-se, encolhendo-se na cadeira. Tentou concentrar-se no folhetim, confirmando a tese de uma das personagens, o Jacinto, que defendia ser a cidade melhor do que o campo, isto não presta para nada, disse o Severo, uma pessoa apodrece no campo, a cidade…, de repente, o pai do Urso interrompeu a sua defesa das ideias do Jacinto e do mundo urbano porque o filho batera de novo na mesa. O Severo olhou para o filho, depois para a janela, depois para as próprias mãos, entrelaçando-as nervosamente, depois outra vez para o filho, o que é que se passa, Carlitos? O Urso caminhou até à cozinha, abriu o armário, tirou a rolha de uma garrafa de medronho e engoliu dois copos de seguida. O Severo voltou à defesa das cidades, o campo cheira a mofo, cheiramos todos a velho, mesmo as crianças, em novo devia ter ido para a capital, isso é que era, agora já estou bom para fazer tijolo. O Carlos entrou na sala, andava de um lado para o outro, a bufar e a fungar, o pai ficava cada vez mais nervoso a olhar para o nervosismo do filho, quem me dera ter ido para a cidade, isto da serra é sempre a cair, o Urso voltou a bater com a mão na mesa, o que é que se passa, Carlitos?, repetiu o Severo. O Carlos deu-lhe um estalo com as costas da mão.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.
Sugerir correcção
Comentar