Felisbela. A tristeza faz-nos mais velhos

Perante o riso generalizado dos colegas, a Felisbela teve de fazer um esforço hercúleo, mas em modo Hércules Fêmea, para não chorar em frente aos agressores.

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Megafone P3: Felisbela. A tristeza faz-nos mais velhos Trym Nilsen/Unsplash
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Durante anos, a Felisbela foi motivo de gozo pelos colegas de turma. A começar pelo nome, que era contraditório ao seu aspecto; não parecia feliz e por isso nunca parecia bonita, sobretudo para a idade que tinha, porque a tristeza faz-nos mais velhos. Também por causa das roupas que usava: invariavelmente um fato de treino cor-de-rosa com fecho de correr, quando já todas as raparigas da turma se interessavam por se embonecar com decotes e saias para os rapazes da turma.

A Felisbela usava quase sempre o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo muito repuxado, o que arrepanhava parte das feições, nomeadamente os olhos que ficavam achinesados e lhe davam um ar esgazeado. Também não era particularmente boa aluna, pelo menos nunca ninguém assistiu a um acto de brilhantismo, era mediana e tinha dificuldades de compreensão nas aulas de matemática, por isso já tinha sido recomendado aos pais que tivesse aulas de apoio.

Quando a Felisbela começou a ir às aulas de apoio conheceu o Miguel, um rapaz da mesma idade que era de outra turma e que também sofria de dificuldades semelhantes ao nível da aprendizagem. O Miguel não era bonito, mas também não se podia dizer que fosse feio. Demasiado alto para a sua idade, não era expectável que um rapaz com treze anos tivesse mais de 1,80 metros, mas, segundo se sabia, era uma característica de família: há mais de três gerações que não havia ninguém baixo na família. Não foi imediato mas ao fim de um mês de frequentarem as aulas de apoio, o Miguel e a Felisbela começaram a olhar um para o outro.

Era uma troca tímida. Apenas aquele gesto cúmplice fazia sentir que ambos tinham uma ligação, embora não soubessem dizer qual seria. A Felisbela disse à mãe que precisava de uma saia de ganga. A coitada da mãe há meses perdera o emprego numa padaria pequena que faliu graças à abertura de um shopping enorme, a somar aos outros que já existiam na zona.

A mãe disse-lhe que infelizmente não tinha dinheiro para lhe comprar aquilo que a Felisbela desejava. Mas podia emprestar-lhe a sua saia curta de bombazine castanha, uma saia cara e antiga que também usou nos seus tempos de escola. A Felisbela considerou uma sorte partilharem o mesmo tamanho de roupa.

No dia seguinte fez-se ao caminho das aulas, enfiada na saia da mãe que lhe mostrava generosamente as pernas. Quando entrou na sala, o gozo habitual dos colegas agravou-se. Começaram a gritar que tinha pernas de canivete e que talvez fosse melhor fazer a barba nas canelas. Para além de lhe perguntarem se tinha roubado ou pedido a saia emprestada à avó. Perante o riso generalizado dos colegas, a Felisbela teve de fazer um esforço hercúleo, mas em modo Hércules Fêmea, para não chorar em frente aos agressores.

A sua parca confiança ficou ainda mais debilitada, não sabia como ia conseguir entrar na sala de apoio e encarar o Miguel agora que tinha ouvido tantos insultos sobre as suas pernas nuas. O Miguel mirou-a com timidez quando a viu sentar-se duas mesas à frente da sua. Como estava numa mesa em posição diagonal à da Felisbela, conseguia ver-lhe muito bem as pernas brancas. Era óbvio que o gosto do rapaz era diferente do dos brutamontes da turma dela. A Felisbela não o viu a admirar-lhe as pernas. Passou a aula com a cabeça baixa, contando cada segundo até poder ir-se embora.

Nesse dia, em vez de voltar para casa da mãe, a Felisbela foi até ao terminal de autocarros. Sabe-se porque foi o último sítio onde foi vista por uma testemunha que o confirmou. A mãe há anos que a procura.

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