O futuro também é dos mais velhos

No meio dos discursos simplistas e arcaicos que associam a juventude ao dinamismo e a velhice à decrepitude, internaliza-se o idadismo.

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Há poucas semanas ouviu-se um discurso, muito aplaudido pela audiência e insuficientemente criticado pelos comentadores, sobre “líderes grisalhos” e sobre a necessidade de "limitar a idade para os cargos políticos". A justificação da crítica era simples e resume-se a isto: só os jovens podem ter uma visão de futuro, só os jovens têm capacidade para abraçar os novos desafios. Os “grisalhos”, dizia o discursante, têm de sair. Numa entrevista publicada em Julho, o mesmo interveniente já tinha afirmado que “com um país envelhecido não há crescimento económico”.

Estas afirmações encontram na sociedade portuguesa uma relativa indiferença e juntam-se a outras de que alguns se lembrarão: a famosa “peste grisalha” que um deputado mencionou numa entrevista ou a adjectivação de uma vice-presidente da Assembleia da República como “senil”, que uma deputada de extrema-direita terá proferido em pleno Parlamento. Rara é, aliás, a semana em que o envelhecimento demográfico não é comentado como um problema e uma ameaça. A retórica é recorrente: “nada animador”, “pesadelo”, “inverno demográfico”, “envelhecimento agravou-se”. Recentemente, um cartoon perdia-se no estereótipo ao representar o envelhecimento na forma de um homem totalmente encurvado, com dores nas costas e de bengala na mão.

Quem olha para os documentos estratégicos elaborados pelos municípios portugueses, vê o mesmo com alguma frequência: o envelhecimento aparece na lista dos problemas e até vem na categoria "Fraquezas" das análises SWOT (Strengths – Forças, Weaknesses – Fraquezas, Opportunities – Oportunidades e Threats – Ameaças). O ambiente é todo hostil: o envelhecimento é para se combater.

Estas visões redutoras levantam pelo menos três problemas. O primeiro, de ordem individual, reside na ideia, discriminatória, idadista, carregada de preconceitos, de que as pessoas idosas já não são capazes de pensar o futuro, de trazer inovação e de integrar novas abordagens ou métodos de trabalho. Além de responsabilizar as pessoas pela sua idade em vez de repensar o acesso à formação adulta (uma opção bastante mais valorizada na Europa do Norte do que no nosso país), estas asserções integram a linha de pensamento – cada vez mais rebatida pela investigação científica – que relaciona a idade e os níveis de produtividade individual. Na realidade, em vão procuraríamos uma correlação entre a idade e a (in)capacidade de ter um pensamento pertinente e estratégico sobre o futuro. Seria aliás contraponto fácil, embora não destituído de verdade, afirmar que existem ideias antiquadas em mentes novas.

O segundo problema é económico. Segundo essa linha de raciocínio, o envelhecimento populacional, medido pela elevada proporção de pessoas idosas na população ou por qualquer outro indicador, levaria a um abrandamento do crescimento económico. É possível argumentar, é certo, que o debate académico continua vivo nesta matéria, podendo-se identificar algumas consequências económicas negativas associadas ao envelhecimento. Todavia não existe evidência científica conclusiva que ligue o envelhecimento populacional e os níveis de crescimento económico. Os mecanismos que relacionam população e economia são bastante mais complexos e implicam ajustamentos nos comportamentos individuais e nas opções políticas, tornando a relação muito ténue. Além disso, o desenvolvimento de um leque diversificado de serviços dirigidos, exclusivamente ou não, à pessoa idosa (e que não se resumem aos cuidados a pessoas necessitadas), o aparecimento de soluções tecnológicas e os efeitos de alavanca noutros sectores da economia fazem do envelhecimento, mesmo para quem quer adoptar uma linha mais economicista, uma oportunidade.

O terceiro problema que esses discursos levantam é social. Afirmar que pensar o futuro é para os jovens quando se sabe que esse mesmo futuro inclui um considerável aumento da população idosa é passar totalmente ao lado do essencial. Nos próximos anos, as aspirações individuais irão multiplicar-se e diversificar-se à medida que os anos de vida saudável forem aumentando. Ao mesmo tempo, as necessidades de cuidados sociais e de saúde irão intensificar-se com o aumento do número dos chamados grandes idosos (80 e mais anos). As exigências do mundo laboral reduzirão ainda mais as possibilidades concretas da solidariedade familiar e intergeracional, enquanto a contínua erosão – não por causa do envelhecimento – do investimento público na esfera social não permitirá providenciar uma sólida rede de apoio. Não será certamente com barreiras idadistas e promoção exclusiva da juventude que se resolverão estas questões.

No meio destes discursos simplistas e arcaicos que associam a juventude ao dinamismo e a velhice à decrepitude, internaliza-se o idadismo, tida a pessoa idosa como culpada e sendo ela rejeitada como inútil e agarrada aos cargos.

Por fim oculta-se o essencial: o envelhecimento demográfico é na realidade uma óptima notícia. Não é um problema ou uma ameaça, apenas um desafio. O estranho é ter de o relembrar.

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