O leitor poderá lembrar-se do tempo em que o Twitter – tal como outras redes sociais, mas, em regra, o Twitter mais do que as outras – era uma ferramenta útil, ainda que imperfeita, para acompanhar eventos complexos à medida que estes se desenrolavam. 

Esse tempo acabou.

Um conflito violento entre o Hamas e Israel seria sempre motivo de desinformação e propaganda de todo o tipo: desde a que é fabricada pelos antagonistas (prática muito anterior às modernas tecnologias de informação) até àquela que surge porque alguém está entediado em frente a um computador. 

Porém, hoje, o Twitter, transformado em X, perdeu a capacidade (e vontade) de cumprir os mínimos no que diz respeito a mitigar a desinformação. Isto é um problema porque, antes de mais, o que acontece no X não fica no X. 

A plataforma está povoada de jornalistas, políticos e decisores públicos. O que lá se passa alimenta conversas nos corredores e nas salas de reuniões em que os poderes circulam, bem como nas redacções; daqui, segue para sites e telejornais, alcançando milhões de pessoas que nem sequer têm uma conta na rede social. 

Os últimos dias oferecem uma torrente de exemplos. Um deles foi o das supostas imagens de bebés queimados durante o ataque do Hamas, publicadas pela conta do primeiro-ministro israelita. Seria demasiado longo escalpelizar aqui os contornos. Numa súmula rápida: a veracidade das imagens foi afirmada por jornais israelitas; negada por pelo menos um jornal palestiniano, que disse tratar-se de uma montagem com base numa suposta fotografia de um cão no veterinário; desacreditada por pessoas que a submeteram a ferramentas de verificação e concluíram tratar-se de uma fabricação com tecnologia de inteligência artificial generativa; e foi um assunto evitado pela Casa Branca. 

Há centenas de outros exemplos em que é extraordinariamente difícil discernir entre verdade, mentira e informação errada. O jornalista da BBC Shayan Sardarizadeh, especializado na verificação deste tipo de conteúdo, tem compilado diariamente casos de desinformação sobre o conflito. A sua conta no X dá um vislumbre da complexidade do problema. Não são apenas fotografias e vídeos falsos, ou imagens genuínas mas retiradas de contexto; são também, por exemplo, contas oficiais que classificam como mentira imagens que são verdadeiras. Num mundo em que tudo pode ser falso, torna-se fácil desacreditar o que é verdade. E ainda mais fácil acreditar no que se quiser.

Sardarizadeh é um de muitos a fazer este tipo de trabalho. Gastam horas e dias a verificar e desmentir (são dois passos, e o primeiro só vale a pena se o segundo for eficaz) lixo que circula online. "Nos primeiros dias do conflito, o volume de desinformação no X foi além de tudo o que eu já tinha visto", afirmou o jornalista. A verificação de um vídeo pode demorar um par de horas ou um par de dias. A verificação de texto é mais difícil. 

No X, o problema agudizou-se nos últimos meses.

A rede social acabou com as contas verificadas que tinham um símbolo azul e passou a vendê-las; qualquer pessoa pode comprar uma destas contas, ostentar o símbolo e ter os seus posts amplificados pelos algoritmos. Também há um novo sistema de partilha de receitas publicitárias, que premeia os conteúdos que têm mais audiência (os conteúdos geradores de indignação ou raiva são uma fórmula eficaz).

Pessoas responsáveis por manterem a plataforma minimamente limpa de desinformação foram despedidas. Há agora um sistema de verificação amador, alimentado pelos próprios utilizadores. Os títulos dos links partilhados deixaram de ser mostrados, sem justificação lógica. O dono da empresa promove contas conhecidas por serem fontes de desinformação. 

Na semana passada, três dias após o ataque do Hamas, o comissário europeu Thierry Breton escreveu uma carta a Elon Musk, a instar a plataforma a tomar medidas para travar a disseminação de "conteúdo ilegal e desinformação". Uma carta semelhante foi enviada a Mark Zuckerberg, CEO da Meta, dona do Instagram, Facebook e WhatsApp. 

A carta assenta no recente pacote legislativo sobre os serviços digitais, que estabelece obrigações de moderação de conteúdos para as plataformas online, incluindo a remoção rápida de conteúdo assinalado pelas autoridades. As multas são pesadas. Mas da infracção à multa vai (como não podia deixar de ser) todo um processo. E os tempos são longos quando se trata de conflitos em que todos os dias o ódio é atiçado e morrem pessoas, especialmente se o efeito dissuasor da lei não funciona junto de quem manda.

Bretton publicou a carta no X, ao que Musk respondeu: "A nossa política é que tudo é open source e transparente, uma abordagem que sei que a União Europeia apoia. Por favor liste no X as violações a que se refere, para que o público as possa ver. Merci beaucoup." (A empresa acabou por remeter para a Comissão uma resposta oficial.)

Este ano, o X já tinha abandonado um código de conduta europeu para o combate ao discurso de ódio (fenómeno que anda de mãos dadas com a desinformação). O código é anterior aos novos regulamentos e foi subscrito por todas as grandes plataformas online. No ano passado, uma avaliação periódica feita pela Comissão ao cumprimento do código apontou uma quebra na resposta da generalidade das plataformas a conteúdos assinalados como problemáticos.

Esta é a face mais visível do problema. Ainda mais difícil de mitigar é a desinformação que corre em plataformas menos abertas, como o WhatsApp ou o Telegram. Em alguns casos, as mensagens trocadas existem apenas nos dispositivos de quem as envia e recebe. O Telegram tem uma penetração relativamente reduzida em quase todos os países europeus, mas já desde o início da guerra na Ucrânia se tinha tornado clara a importância que tem noutras geografias. E os vasos são comunicantes: o que começa numa rede normalmente acaba nas outras.

Não podemos dizer que não fomos avisados. Entre outros, pelo famoso astrónomo Carl Sagan, que, num dos seus livros, The Demon-Haunted World (1995), escreveu:

"Tenho um mau pressentimento sobre a América no tempo dos meus filhos e netos (...) em que incríveis poderes tecnológicos estão nas mãos de muito poucos, e ninguém dos que representam o interesse público consegue sequer compreender os assuntos; em que as pessoas perderam a capacidade de definir as suas próprias agendas ou questionar de forma conhecedora aqueles que têm autoridade; em que, agarrados aos nossos cristais e consultando nervosamente os horóscopos, a nossa capacidade crítica em declínio, incapazes de distinguir entre aquilo que nos faz sentir bem e o que é verdade, deslizamos, quase sem notar, de volta para a superstição e as trevas."

Sagan falava sobre os EUA, em relação aos quais parece ter sido certeiro. Mas a profecia é válida para o resto do mundo.

Ninguém conhece uma solução única. Qualquer coisa que se aproxime de um remédio implica leis como as da UE, vontade de as aplicar, um mínimo de decência da parte de quem gere as redes sociais, uma imprensa forte, exigência face a quem tem poder, e doses abundantes de consciência individual e de capacidade crítica, para, entre outras coisas, pensarmos antes de partilharmos e não cedermos à indignação instantânea. Continuarmos a deslizar não é inevitável.