O activismo antidemocrático de Carmo Afonso

Valores são coisas boas, mas digladiam-se entre si. O dilema é ter de afastar ou diminuir um para proteger outro.

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Francisco Mendes da Silva (F.M.S.) reputou a opinião de Carmo Afonso sobre o incidente da tinta atirada a Duarte Cordeiro como sendo subjectivista, assente na mera arbitrariedade das suas convicções e incompatível com a democracia e a liberdade de expressão. Mas Carmo Afonso tem razão.

O seu pecado, ao dizer que “não podemos, nem devemos, dissociar a bondade de um protesto da bondade da causa pela qual se protesta”, foi apenas o de escrever sobre um tema difícil sem reduzir a regra e esquadro uma complexidade que F.M.S. não avistou. O que ela fez, com notável clareza, foi exprimir a sofisticação de um mundo marcado por conflitos de valores por vezes irresolúveis e dilemáticos. Ele tropeçou na epifania de uma visão simplista de um universo a preto e branco, em que, não só cada valor reina sozinho e supremo em cada ocasião, como democracia, pacifismo e liberdade são valores de teor incontroverso.

F.M.S. começa o assaque com uma “evidência sobre a democracia”: “os valores e as causas com que simpatizamos são do domínio da subjectividade, mas o espaço público democrático, no qual em princípio todas as subjectividades podem ser expressas e debatidas, deve ser do domínio da objectividade”. Esta frase, vácua e superficial, não tem nada de evidente e, no que lhe sobra de sentido, é errada. A ideia de espaço público democrático é um valor pelo qual milhões têm lutado, sido presos e mortos. Sendo a democracia um valor, é um contra-senso dizer que os “valores por que lutamos são do domínio da subjectividade”, mas a democracia é “do domínio da objectividade”…

Acresce que valores como não discriminação, liberdade, sustentabilidade não são subjectivos. Subjectivismo é a teoria segundo a qual a validade ou justificação de juízos éticos é da propriedade de cada indivíduo: certo é aquilo que cada um de nós decide que é. Não existe bem e mal, moral e imoral. Ser certo para alguém é o que basta: não há metro ético ou racional que sirva para medir esse acerto. Defender que uma raça deve ter mais direitos que outra, para os subjectivistas, não é bom nem mau. Achar errado ser-se racista é uma opinião que vale tanto como a contrária. Pretender que causas e valores são, como o paladar, subjectivos é um absurdo. Deixaria de haver motivo para debates e artigos de opinião. Uma opinião não se torna subjectiva por ser proferida por um sujeito...

Carmo Afonso nada disse de subjectivo. Falou na “bondade da causa”, não de esta ser mera função “das nossas convicções”, como acusa F.M.S.. Uma causa não é eticamente correcta por alguém achar que sim, mas por haver razões que a justificam. Valores como anti-racismo, igualdade, inclusão, liberdade, direito ao ambiente não estão “in the eyes of the beholder”. Quando F.M.S. diz que “não pode ser a arbitrariedade de cada um a determinar que causas têm ou não direito de cidade” afunda-se no erro da sua própria opinião: foi ele quem defendeu o subjectivismo das causas. Racismo, homofobia, discriminação não são juízos arbitrários e subjectivos, nem uma questão de gosto pessoal.

Ao escrever no Expresso que, entre “dissociar a bondade do protesto da bondade da causa” e ser a “arbitrariedade de cada um” a ajuizar, se revê na segunda, Daniel Oliveira aceita uma falsa dicotomia. É tão “arbitrário” dizer o que se deve ou não fazer em democracia, como quais as causas com mérito. Mais, sendo a democracia e outras causas valores que podem entrar em conflito, devemos ir tentando resolvê-los num sentido ou noutro. Carmo Afonso procurou fazê-lo, dando preponderância, no caso, a um dos valores. Existem boas razões para ajuizar diferentemente. Mas argumentar na base desta falsa dicotomia é um erro.

Valores são coisas boas. Mas digladiam-se entre si. O dilema é ter de afastar ou diminuir um para proteger outro. Estado de direito, democracia e direitos fundamentais são conceitos distintos, que entram amiúde em conflito. O mesmo sucede entre direitos fundamentais e outros valores. O caso da tinta é um desses. Carmo Afonso, ciente desse conflito, tomou partido argumentativo nesta guerra civil de valores. F.M.S. achou que era simples, não havia qualquer conflito e bastava usar um só valor: democracia. E tornou-a simples e “evidente”, despindo-a do que ela tem de problematizável.

Afirma depois que a “superioridade dos valores da liberdade não tem só uma justificação moral, por esses valores serem uma decorrência das noções da dignidade humana”. Todavia, dignidade humana é um conceito moral (concebido por Kant, associado ao seu imperativo categórico). F.M.S. está, pois, a dizer-nos que a liberdade não tem só uma justificação moral, tem também… justificação moral.

O seu maior erro, porém, é supor que a democracia põe “ao dispor de todos” os “meios pacíficos de persuasão e conquista de maiorias políticas que a democracia moderna oferece”. A ideia de que a democracia funciona para “todos” é uma história da carochinha que F.M.S. terá dificuldade em vender a minorias rácicas ou étnicas, homossexuais, vítimas de pobreza geracional, e tantos outros assolados por egoísmos padronizados de maiorias.

Vítimas da violência discriminatória não eram só o povo relativamente ao clero e à nobreza da monarquia absolutista francesa de Luís XVI, são também aqueles cujos direitos e interesses são renegados pelo modo como o funcionamento das democracias está estruturado. Direitos e interesses cujo desprezo foi passado de avós para netos, sem que tenha havido maiorias que lhes valessem. Nem os outros meios de persuasão civilizados que F.M.S. nos sugere.

A violência do sistema é sentida pelas vítimas dessa violência, não pelos outros. E a agressividade da sua reacção deve ser também avaliada pela medida em que são vítimas de incessante violência da sociedade. Se reagirem com alguma, comedida, violência, não nos queixemos: muitos de nós estamos sentados no sofá de privilégios que nos deram. É muito fácil cantar do alto do conforto desse sofá. Todas as revoluções sociais da história foram feitas com combatividade social. Quantas vezes a violação da lei foi o meio necessário para alterar a lei.

Uma sociedade de liberdade deve aceitar como eticamente justificada a expressão, por vezes encarniçada, de meios de reacção numa luta por causas justas, mas apatanhadas pelos poderes políticos e económicos que vão servindo as maiorias que os alimentam, e que por sua vez as suportam, geração após geração. É desagradável? Certamente que sim. Mas sem confrontações, lutas, rebeliões e umas pitadas de violação da lei as democracias tornar-se-iam vácuas e estagnadas. Eternizar-se-iam ao serviço de uns, em detrimento de outros.

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