A invisibilidade estrutural da cultura nos ODS da Agenda 2030

Quer as conclusões emanadas da Mondiacult 2022, quer a recente Declaração de Cáceres querem iluminar um novo caminho estratégico para a cultura.

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No encontro dos 27 ministros da cultura da UE realizado recentemente em Cáceres, o ministro da cultura espanhol, Miquel Iceta Llorens, afirmou peremptoriamente: “A cultura não é ainda um pilar das políticas públicas da União Europeia”. Enfatizaria ainda que existe um largo consenso entre todos os Estados-membros de que é fundamental inverter essa percepção/realidade, de modo a eleger a cultura, a criatividade e o património como um bem público essencial, um bem comum global, ao mais alto nível da esfera política e decisória.

Iceta referia-se, no fundo, a uma lacuna, relativização e sub-valorização que não deve(ria)m deixar de causar espanto e preocupação: o facto de o eixo cultura-criatividade-património não ter sido reconhecido, per se, de um modo evidente, afirmativo e individualizado, como um dos objectivos de desenvolvimento sustentável (ODS) definidos em 2015 pela Organização das Nações Unidas no âmbito da Agenda 2030. Isto ainda que este organismo mundial tenha então frisado que a agenda e objectivos em causa, ao incluírem diversas referências aos domínios cultural e patrimonial em determinadas metas específicas, constituíam “um reconhecimento sem paralelo” e inédito desse universo.

Dir-se-á, em abono da verdade, que a cultura marca presença, de modo estratificado, em vários segmentos, camadas e até entrelinhas de muitos desses 17 objectivos (veja-se, porventura, o de ligação mais directa, o ODS11, que se centra na prioridade de tornar as cidades e os assentamentos humanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis), integrando-se ou subjazendo, em moldes diversos, a temáticas gerais como a saúde (ODS3), a igualdade de género (ODS5), o trabalho digno e o crescimento económico (ODS8), a inovação e as infra-estruturas (ODS9), a redução das desigualdades e assimetrias (ODS10) ou as parcerias para o desenvolvimento (ODS17), entre outras. Não obstante, o sector da cultura/artes e da criatividade tem vivido ao longo das últimas décadas amiúde envolto (e enredado), quer no quadro internacional quer inclusive em vários planos nacionais, em três paradoxos nucleares – não é despiciendo recordá-los – que ajudam a explicar a sua, até agora, reduzida visibilidade estrutural.

Um deles tem a ver com o facto de o campo da cultura apresentar, por inerência ou atribuição, uma vasta e difusa amplitude conceptual e empírica, posicionando-se simultaneamente como causa e efeito, como ponto de partida, ponte e paragem final. Isso acarreta que seja encarado, simbolicamente e na prática, como uma espécie de argamassa comum, transversal, naturalmente diluída por diferentes áreas de actuação – o que, ao mesmo tempo e algo paradoxalmente, lhe parece retirar, em termos de percepção, um valor e reconhecimento intrínsecos e específicos, por determinadas esferas do poder e franjas da sociedade, enquanto universo autónomo e dotado de traços e exigências próprios.

Independentemente da sua natureza transversal e da sua vincada propensão dialógica e holística, a cultura carece de uma individualização suficientemente (de)marcada e inclusive simbólica, de um lugar de fala que legitimamente reivindique como “exclusivamente” seu e onde se ancore de um modo identitário, sólido e afirmativo. Este paradoxo patenteia-se, assim, na entrópica ambiguidade da definição do conceito de cultura quer no debate público, quer na condução de políticas públicas para este sector.

O segundo paradoxo reporta-se à dimensão económica e sua conexão com o sector cultural e criativo. Como escreveu Lipovetsky, “já não estamos na nobre ordem da cultura definida como o caminho do espírito; mudámos para um ‘capitalismo cultural’ em que as indústrias da cultura e da comunicação se impõem como ferramentas e motores de crescimento da economia”.

Vivemos num tempo de inevitável simbiose entre economia e cultura, mas persistem resistências (umas mais incisivas, outras mais impressionistas) a esta visão, inclusive em certas instâncias de poder, no próprio milieu cultural e no seio das comunidades. Existe, ainda hoje, uma certa percepção geral de incompatibilidade insanável entre mercado e cultura, isto apesar dos vários estudos especializados e conclusões estatísticas que têm atestado o contrário, corroborando essa ligação virtuosa: por exemplo, em 2022, segundo o Eurostat, o emprego cultural constituiu 3,8% do emprego total na UE, equivalendo a cerca de 7,7 milhões de indivíduos, tendo a taxa de empregabilidade no sector cultural e criativo aumentado em 19 (dos 27) países da UE quando cotejada com a do ano anterior. Em Portugal, o emprego cultural registou um incremento de 5,4% em relação a 2021, correspondendo a 4% do emprego total.

Terceiro paradoxo: intimamente ligado ao anterior, refere-se ao binómio utilidade/inutilidade quando se aborda o tema da cultura e, em particular, o universo das artes. Revisito o pensamento de Nuccio Ordine para inverter, sem desvirtuar, a sua tese, alertando-nos este filósofo para a utilidade das coisas “inúteis” num mundo utilitarista como o actual, em que “um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fendas mais que um quadro”.

Se a “inútil” cultura consta, de facto, dos discursos oficiais da UE, sendo considerada útil e relevante, tem-se assistido depois, não poucas vezes, a uma tradução desigual, fragmentada e pouco ambiciosa dessa narrativa no mapeamento das necessidades e expectativas dos players, na consolidação das dinâmicas de coesão do sector (no amplexo europeu), na afinação dos mecanismos de articulação multi-actores, na regulamentação laboral, no desenho das estratégias globais e políticas públicas, na transposição dessas directrizes para as realidades-escalas nacionais e respectivos planos sectoriais, na acessibilidade social e intelectual da máquina comunicacional, na mediação de conteúdos ao nível regional, na musculação dos programas estruturais de financiamento e na monitorização crítica dos impactos.

O marco de acção para a Agenda 2030 não reconhece adequadamente a contribuição vital do sector cultural e criativo na implementação dos ODS, sendo fundamental estudar, identificar e criar uma base de evidência sistemática e mensurável dos contributos e repercussões, directos e indirectos, dos ecossistemas e demais arquitecturas culturais no processo de desenvolvimento sustentável.

Daí que a Declaração de Cáceres, recentemente consensualizada sob a égide da presidência espanhola do Conselho da UE, constitua um marco importante, na senda do já assumido na Mondiacult 2022 (Conferência Mundial sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO), em que foi reiterada a importância de enquadrar a cultura como bem público global na agenda internacional.

Este movimento europeu de maior empoderamento do sector cultural e criativo simultaneamente como pressuposto-âncora, instrumento basilar e meta estratégica para um desenvolvimento sustentável terá agora de ser efectivamente consequente e de impactar na realidade, para que a cultura não seja um tópico meramente “útil”, teoricamente estimulante e discursivamente apelativo, mas um campo de pensamento-acção-transformação visibilizado, priorizado e robustecido. Para que realmente ninguém fique para trás.

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