O que fazemos com os rufias? (E quem são os rufias?)

Afinal é reservado o direito de admissão em manifestações de acordo com o entendimento da “voz coletiva” que comanda os manifestantes. Devia-se pensar em credenciar os porteiros de manifestações.

“As Constituições são como as salsichas: o melhor, é não sabermos como foram feitas.”
(Adaptado de autor anónimo, ou erradamente atribuído a Otto von Bismark)

Foi convocada uma manifestação de rua por movimentos cívicos que protestam contra a falta de casas e a carestia da habitação (pelo meio, o capitalismo também vai de arrasto, et pour cause!). Junta-se quem quer. No país reina a liberdade e, que seja do conhecimento da Constituição, ela não é condicional nem condicionada segundo quem a quer frequentar. Dirigentes do PCP, do BE, do Livre juntaram-se ao protesto. É legítimo e habitual. Três deputados do Chega tencionavam alinhar na marcha e foram impedidos, depois de terem sido insultados e até acossados por ameaças de agressão.

Aprendemos com o episódio que há manifestações a que nem todos podem ir. Por acaso, foram deputados da extrema-direita; e se fossem deputados do PSD, da IL, do CDS, também eram barrados a meio da avenida? Se calhar, sim: pois se até os do PS são “fascistas” nos dias maus... Afinal, as manifestações são tuteladas e há uma voz superior, “coletiva”, como é da praxe, a ditar quem pode alinhar na manifestação e quem vê o acesso negado. A Constituição está enganada: afinal, é reservado o direito de admissão em manifestações de acordo com o entendimento seletivo da “voz coletiva” que comanda os manifestantes. Devia-se pensar em credenciar os porteiros de manifestações.

Não sei o que mais incomoda no episódio: se parecer (mas, é bom notar, nem isso é) que estou solidário com os três deputados com saudades de Salazar; ou se a arrogância de certos militantes de esquerda radical e de extrema-esquerda que autoatribuem o direito de interpretar o significado de liberdade ao arrepio de valores constitucionais. Os cordões sanitários à extrema-direita são devidos, mas não os que impeçam um direito constitucionalmente consagrado, um que, ainda por cima, é genético da democracia: o direito de manifestação. Mandou a ironia do destino que o episódio tivesse a serventia de identificar radicais de esquerda por aquilo que um observador imparcial consegue notar: a sua conceção de liberdade é vista de través, considerando-se no direito de atuarem como porteiros da festa sem que alguém os tenha mandatado.

A extrema-direita é ostracizada, e devidamente, pelo que defende e da forma que defende. Mas enquanto tiver as portas da democracia abertas, não se concebe como guardiães não solicitados da mesma decidam excluir militantes de extrema-direita dos rituais da democracia. Vem mesmo a calhar, porque ultimamente o argumento que serve para fundamentar a exclusão da extrema-direita (argumento de facto, mas não jurisdicionalmente validado) é não se rever em valores constitucionais que são matriz da democracia. A ironia que o destino arrematou é vermos militantes de extrema-esquerda a passarem por cima de tribunais e a restringirem um direito constitucional fundamental a deputados da extrema-direita que queriam integrar a manifestação. Para o caso de os porteiros estarem esquecidos, eram deputados à Assembleia da República, o órgão de soberania por excelência da democracia, que foram impedidos de entrar na manifestação.

Não tem validade outro argumento invocado para a exclusão: diz-se que os três deputados foram à manifestação só para provocar. Antes de lhes terem perguntado, tiraram a limpo que essa era a sua intenção. Por vezes, podemos ler intenções nas entrelinhas, mas de outras vezes elas ficam propositadamente sublinhadas, e a tinta-da-china, nas páginas que mostram a narrativa que convém. Nem que atropelem a liberdade de que se dizem procuradores maiores – nem que ofendam a democracia (a apertada conceção que da democracia têm). As deduções ganham valor de prova por cima da voz dos que se submetem a um arremedo de julgamento sumário.

E de gente tão letrada (não esquecer os pergaminhos intelectuais e a superioridade moral levantada constantemente pelos radicais de esquerda), não se esperava que caíssem na armadilha dos deputados de extrema-direita. Estes depressa se puseram no papel de vítima, logo numa terra que tem a irresistível propensão para ser solidária com vítimas de diversa estirpe. Para os manifestantes que atuaram como porteiros – e para os dirigentes dos partidos desta margem que vieram dizer que o cartão vermelho passou no crivo do seu particular VAR – sobrou a incontinência de serem eles próprios a dar palco a quem quiseram impedir de participar na manifestação.

Tivessem a lucidez de dedicar a máxima indiferença aos “intrusos” de extrema-direita e poucos teriam dado conta que a manifestação tinha sido contaminada com a sua presença. Eis um caso típico de tiros assestados nos dois pés: num dos pés, por darem protagonismo a quem queriam silenciar; no outro, porque deixaram patente a sua linhagem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico)

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