O Tribunal Constitucional e o Direito do Desporto (I)

1. Sou há muito tempo, e de forma bem pública e constante, um defensor acérrimo do papel dos tribunais estatais no mundo do desporto. Os tribunais estatais e, neste momento mais recente do Direito do Desporto nacional, o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), o Supremo Tribunal Administrativo (STA) e o Tribunal Constitucional (TC), muito têm dado à criação e uniformização de um Direito do Desporto moderno, fundamentando de uma forma genericamente positiva aquilo que lhes pertence, no universo da resolução dos litígios desportivos, e o espaço dos órgãos próprios federativos. Sem a intervenção dos tribunais estatais, desde logo os referenciados, não tínhamos, na actualidade, com oito anos de Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), uma aplicação imparcial e certeira da lei.

2. No final do ponto anterior vê-se já referenciada a nossa total discordância com o agir, por via de regra, do TAD. Discordamos da sua existência, também há muito, pública e acerrimamente. Neste jornal, no já longínquo ano de 2013, apelámos ao Presidente da República de então para que sujeitasse o decreto da Assembleia da República que criava o TAD e aprovava a sua lei, a fiscalização preventiva da constitucionalidade, junto do TC, com o fundamento que a Assembleia da República, três secretários de Estado (Laurentino Dias, João Correia e Alexandre Mestre), a Comissão da Justiça Desportiva, presidida pelo conselheiro Cardoso da Costa, e tantos outros, estavam de acordo em não haver recurso para os tribunais estatais das decisões do TAD. No seguimento, o TC, por duas vezes, e por bem significativas maiorias entendeu que, de facto, pelo menos, essa inconstitucionalidade deveria ser afirmada. À terceira intervenção a Assembleia da República criou norma que, em bom rigor, ainda não foi escrutinada pelo TC, mas o mundo avançou.

3. E eis que, no passado dia 26 de Setembro, a primeira secção do TC, por unanimidade, ditou acórdão (n.º 545/2023) sobre o denominado “Caso Palhinha”, relativamente ao qual levas e levas de “especialistas em Direito Desportivo” se deliciaram, com a respectiva dose de ignorância que umbilicalmente os acompanha, botando no espaço público teses, opiniões e mais teses e opiniões, à medida que o processo avançava nas diversas instâncias.

A segunda parte deste nosso artigo sublinhará as principais proposições alcançadas pelo TC, que parece ter colocado um ponto final ao caso - a não ser que se siga ainda o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos -, que não foi favorável ao atleta e ao clube. Por termos essa segunda parte, e tendo em conta a questão do precioso espaço do jornal, deixamos aqui hoje, a finalizar, os passos determinantes desse longo processo.

4. Dispõe o artigo 4º, n.º6, da Lei do TAD: é excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.

Como se recordarão alguns dos leitores, o jogador, em dado jogo, foi alvo de uma advertência, sendo-lhe mostrado o cartão amarelo. Com esse cartão, o jogador completou um ciclo de cinco cartões o que, de forma automática, levou à aplicação (confirmação) pelo Conselho de Disciplina de um jogo de suspensão, com projecção num importante jogo da jornada que se seguia. Desta decisão o jogador recorreu para o TAD, o qual entendeu que, não obstante o n.º6 atrás referido, tinha competência para conhecer da questão e, subsequentemente, deu também razão ao recorrente. Segue-se o recurso da FPF para o TCA Sul que inverte a questão da (in)competência do TAD, porque precisamente entendeu que estávamos perante uma dessas questões cobertas pela mencionada norma. Recorre o jogador para o Supremo Tribunal Administrativo, que reitera a posição do tribunal administrativo inferior.

Segue-se, finalmente (?), o recurso para o TC, por parte do jogador, que teve por objecto a seguinte questão: “O artigo 4.º, n.º6 da Lei nº 74/2013, de 6 de Setembro, alterada pela Lei n.º 33/2014, de 16 de Junho, na interpretação ínsita no acórdão recorrido [o do STA], segundo a qual aplicação da sanção disciplinar de suspensão por um jogo e multa de 1,5 unidades de conta, prevista no artigo 164º, n.º7 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal época 2020-2021, quando estejam em causa questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, está excluída da jurisdição do Tribunal Arbitral do Desporto, sendo, em consequência, insusceptível de qualquer controlo jurisdicional”. Veremos os termos da resposta do TC na segunda parte deste texto.

josemeirim@gmail.com

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