Eu quero ser artificialmente inteligente

Finalmente posso vaguear pelo mundo que transformou o bronco que sou num CEO de sucesso do meu unicórnio inovador.

Quero que os meus neurónios sejam artificiais e que o meu cérebro seja uma rede neuronal otimizada para tratar uma miríade de dados e conseguir resultados extraordinários no menor tempo possível. Quero que a minha rede neuronal seja generativa, porque passarei a ser um inovador, diria até – um sôfrego da inovação – frequentador assíduo das tão famigeradas Web Summits de todo o mundo, onde apresentarei com toda pompa, os meus planos de investimento, as minhas startups, unicórnios e outras maravilhas que transformarão o mundo. Terei honras de abraços presidenciais e outras euforias várias.

Finalmente conseguirei imitar na perfeição as pinturas, os livros e as músicas que os gostos de outrora, não percebo muito bem porquê, dizem que são obra de indivíduos que existiram e que eram dotados de inteligência e génio naturais! De que lhes serviu isso? Fazem agora parte de uma base de dados pixelizada, digitalizada, que finalmente está ao alcance do mais comum dos mortais. Não era isto a que chamavam a democratização do conhecimento? Pois aí está!

Na verdade, bem no meu íntimo, sou o que se pode chamar um autêntico “bronco”. Mas que obrigação tenho eu de o revelar, se com a minha IA poderei ter os meus momentos de glória. Serei um herói inovador. Não tenho direito a isso? Gastei milhares de horas da minha juventude em frente aos ecrãs de telemóveis, tablets, PCs, sentindo o pulsar das redes, e, mais tarde, milhares de outras horas a exercitar a minha capacidade de colocar prompts nos chatbots. Sou agora um verdadeiro e hábil “prompetista” – consigo sacar a informação que quero dos chats, consigo manipulá-la, consigo criar factos do nada. Tenho o poder de os propagar nas redes, como se fosse um jogo, gozar com o temor dos envolvidos, difamá-los e até cancelá-los, se muito bem me apetecer.

Consequências? Que me importam? Perdi há muito o pudor e os entraves éticos. O mundo sempre foi assim e sempre assim será. E agora, dotado da minha IA, posso responsabilizar o algoritmo por não estar devidamente programado. Ele faz isso por deteção de regularidades estatísticas e padrões de linguagem e, por isso, a responsabilidade é, em última instância, das bases de dados, isto é, do passado. Eu consigo sacar respostas, planos, criações para tudo. Eu sei fintar os chatbots. Desenvolvi essa capacidade com muito esforço. E não me venham dizer que não tenho mérito e não devo ser compensado por isso.

Consigo ser um investidor de sucesso, gerando a riqueza que quiser, e, nas horas vagas, posso ser um compositor, um pintor ou um poeta. Basta que eu use a minha IA, com um programa de transferência de estilo, misturada com a tal capacidade “generativa”, e poderei hoje ser um Van Gogh, amanhã um Beethoven ou um John Lennon, um Camões ou um Baudelaire. Não que alguma vez tenha visto, ouvido ou lido uma única obra dessa gente. Está tudo na NET e em bases de dados. Basta procurar e escolher quem eu quero ser.

E não me venham responsabilizar. Antigamente ainda seria apelidado de ser uma fraude, um plagiador. Mas isso são agora capacidades instaladas, elogiadas e reconhecidas social e empresarialmente.

A minha aprendizagem começou cedo, na escola, com programas oficiais da responsabilidade de ministros democraticamente eleitos. OK – deslumbrados e vulneráveis às maravilhas do progresso tecnológico e à pressão das grandes tecnológicas, os verdadeiros deuses da atualidade, os detentores dos segredos do progresso da humanidade. E os especialistas das Ciências da Computação? Alguns alertaram para os perigos da arma que inventaram. Tal como como Openheimer ou Einstein … num outro contexto bem familiar. Mas quem os ouviu? Vieram outros e prometeram a redenção, o progresso ao alcance de todos, a libertação dos miseráveis. Um mundo igual para todos. Uma distribuição mais equitativa de riqueza, apesar dos milhões de descartáveis que o propalado progresso criou. A maré quando sobe, sobe para todos, diziam.

E, com a IA, a maré subiu de facto para alguns, como uma onda de tsunami, estando eu, e os vários como eu, a salvo na crista da onda. Mas a onda, por onde passou, esmagou os muitos a quem o progresso da IA não chegou. Não foi bonito, mas o meu algoritmo felizmente é robusto e incapaz de perceber a desumanidade que se tinha instalado. Por isso, continuo satisfeito com a IA. Ela protege-me de tudo o que possa afetar o meu sossego. E essas notícias são distantes, de lugares longínquos e esquecidos, e são, com toda a certeza, produzidas pelos habituais negacionistas, pelos arautos da desgraça, pelos que nunca recebem de braços abertos, como deviam, o santificado progresso. Isso sempre aconteceu – desde a Revolução Industrial, passando pela bomba atómica, pela Internet, pelas redes sociais, tudo sinais de um mundo em transformação, povoado por uma massa enorme de indiferentes, de cretinos desumanizados, mas certamente artificialmente inteligentes. E agora a IA finalmente trará o paraíso há muito prometido.

E é isto! Finalmente posso vaguear pelo mundo que transformou o bronco que sou num CEO de sucesso do meu unicórnio inovador. E deixei-me de sentimentos que só me estorvavam o meu desenvolvimento pessoal, conseguido com competentes personal trainers e com a imprescindível ajuda da IA. Recorro a estratégias delineadas com a inevitável IA, para seduzir outros seres para relacionamento pessoal (outrora, relação amorosa) e para superar instantemente qualquer sentimento de perda. O meu tempo é valioso. Não se compadece com as lamechices do passado.

Sou moderno e um verdadeiro amante do progresso. Sou um tipo de sucesso. Sou o máximo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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