Sílaba a sílaba

À dificuldade de leitura acrescia a complexidade dos conceitos, o sentido da vida estava pejado de palavras incompreensíveis, pedras no caminho, era difícil andar por terrenos assim.

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Ao final do dia, depois de regressar da serração e de ter entregado umas encomendas, o Carlos foi procurar o livro que tinha trazido de casa da Celeste, da autoria do tal filósofo que até sabia o sentido da vida. Tinha-o escondido atrás de uma cómoda. Arrastou o móvel, apenas o suficiente para conseguir meter a mão junto à parede e pegar no livro. Soprou uma teia de aranha que veio agarrada, limpando de seguida, com a mão, o pó acumulado na capa. Ouvir o Moisés falar com emoção do tempo passado em casa da Celeste tinha-lhe despertado alguma curiosidade, apesar da sua resistência em admitir qualquer interesse. Folheou-o e soletrou algumas palavras em voz alta, hesitante, sílaba a sílaba, enquanto seguia a frase com o indicador. À dificuldade de leitura acrescia a complexidade dos conceitos, o sentido da vida estava pejado de palavras incompreensíveis, pedras no caminho, era difícil andar por terrenos assim, cheios de palavras solenes ou herméticas. Fechou o livro e suspirou. Voltou a abri-lo, numa outra página e retomou a leitura aleatoriamente, es-te-si-a car-di-o-gnós-ti-ca, a-pa-ren-ta-da ao i-lu-mi-na-ci-o-nis-mo per-sa. Ficou uns segundos em silêncio a pensar na frase lida, deve ser estrangeiro, pensou, não se percebe nada. Repetiu as últimas duas palavras lidas, i-lu-mi-na-ci-o-nis-mo per-sa, abanou lentamente a cabeça; não, aquilo era português, mas uma outra forma de falar, aquelas palavras eram vedações, como as dos campos, não o deixavam entrar naquele terreno onde o sentido da vida morava. Estava dividido entre a possibilidade de aquele objecto conter o mais relevante dos conteúdos ou ser simplesmente composto de bujardas armadas aos cágados escritas por um borrego qualquer a quem fizeram doutor. Não deu conta de o pai se ter aproximado. O Severo, espreitando por cima do ombro do filho, perguntou:

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