As sementes espalhadas

A vida eterna não é um lugar arrumado no Céu, com flores e harpas, nuvens e luz, é o caminho cru enxovalhado inesperado e sobretudo infindável que a grande corrente do ser atravessa.

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Face à calamidade dos incêndios, a Celeste não conseguiu evitar a emergência da sua natureza de religiosa, atirando os seus sermões à população, fazendo perigar a sua nova identidade: Meus anjos, avante! O tronco da árvore derrubada é o resto da vida, o osso depois da refeição, porém, o essencial são as sementes espalhadas. A nós, seres precários efémeros mortais, interessa-nos — e aí reside a continuidade de uma vida — as palavras que foram oferecidas como alimento a quem teve ouvidos para se alimentar, a vida convertida em gargalhada palavra lágrimas graça entrega contemplação, sem esquecer o clamor do ódio e o espanto da beleza, sem esquecer o erro que nos eleva, pois o erro é um escadote para chegar ao cume da verdade: tudo isto são sementes, resta saber onde caíram e onde medraram. Não é o tronco, são as sementes. Meus anjos, a morte é uma porta para a rua, para a paisagem plena, para novos caminhos de cabras e estradas por cumprir. Saudamos a morte com um beijo frio de cadáver, porque não lhe entregamos mais do que o corpo, deixando o que importa, sementes em quem tiver ouvidos. Sacudam o pó das vossas sandálias, disse Jesus, mas eu digo-vos mais, sacudam não apenas o pó das sandálias, mas todo o vosso pó, o corpo todo, os ossos e o sangue e a carne, porque a Deus só interessam ideias, e é assim, despidos de poeira, que se devem apresentar ao Senhor. Fiquem a saber que Deus feito Homem continua entre nós, passou a ser Deus feito humanidade, e a vida eterna não é um lugar arrumado no Céu, com flores e harpas, nuvens e luz, é o caminho cru enxovalhado inesperado e sobretudo infindável que a grande corrente do ser atravessa, numa metamorfose constante, não somos uns pedaços de terra com ambição de viver para sempre como pedaços de terra, somos, isso sim, um caminho de cabras que vai do início da escuridão ao fim da luz, o grande rosário do cosmo, o terço usado por Deus para rezar o universo de uma ponta à outra, da cabeça à cauda. Meus anjos, avante! Ora-sus!

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