No tempo dos fogos

Fora transformado então, por ironia, na representação do confronto do ser humano, pequeno e frágil, com o universo, um minúsculo David contra o Golias cósmico.

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No tempo dos fogos, as mulheres abençoavam a água e falavam com ela como os generais falam com os soldados antes da batalha. Mas como não tinham a mesma magia dos murmúrios da criada do advogado, pediam-lhe a ela, sempre que a viam, para conversar com as chamas e mandá-las embora, porém, a criada dizia não ter esse poder, pois as orações não são de água, são animais diferentes, são de ar. Chamem o Alberto dos bombeiros. No tempo dos fogos, os animais calavam-se, os porcos, os cães e os pássaros, as árvores batiam o coração em silêncio e fechavam os olhos esperando que o incêndio não as tocasse enquanto ouviam as outras, à sua volta, gritar no suplício da serra. No tempo dos fogos, os velhos morriam muito mais do que seria fisicamente possível, pois além dos que morriam queimados, outros morriam várias vezes porque sobreviviam vendo arder tudo o que construíram ao longo dos anos. Se eram poupados pelas chamas, era apenas para assistirem à destruição de tudo aquilo em que transformaram a sua carne, o fruto de toda uma vida, do seu trabalho, das suas relações. É uma maneira exógena de morrer, uma morte por cada árvore plantada, por cada animal, pela casa, e pior, muito pior, por cada amigo, por cada familiar. Um corpo pode sobreviver, mas tudo aquilo que esse mesmo corpo construiu era transformado à sua frente, com obscenidade, em cinzas. O fogo ensina-nos o milagre da multiplicação da morte, mostrando ser possível, usando apenas chamas, matar uma pessoa inúmeras vezes. No tempo dos fogos, começaram a pedir ao Carlos, o urso, que ameaçasse as chamas. O Carlos, aquele rapaz perdido na dor diária de assistir o pai a espancar a mãe, condenado a um inferno particular, fora transformado então, por ironia, na representação do confronto do ser humano, pequeno e frágil, com o universo, um minúsculo David contra o Golias cósmico. Evidentemente, não resultava como parecera ter resultado na propriedade do advogado, mas havia um claro alento quando o viam assim, imóvel, como um urso, sem qualquer receio aparente. Isso bastava-lhes.

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