Baralhar e dar de novo?

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1. Périplo é palavra que está na moda nas acções políticas e não só. Não há entidade que se preze se não efectuar um périplo. Assim, não é difícil entender o porquê formal do processo de auscultação iniciado pelo Governo sobre o futuro da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro). Mas a denominação é, quase sempre, algo que não é decisivo. Muito mais importante é, sem dúvida, o conteúdo. De todo o modo, para enquadramento, eis um resumo do marco inicial do périplo: “Teve lugar ontem [14 de Setembro] a Sessão de Lançamento do Périplo Nacional, que abriu a discussão sobre a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. O propósito do Governo, segundo foi anunciado, é ter o périplo concluído até início de Novembro e ter uma proposta a submeter à Assembleia da República em Abril de 2024. A discussão andou muito à volta de questões teóricas, como se o diploma se deve designar como “Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto” ou apenas “Lei de Bases do Desporto”.

2. Acompanhámos de perto, e participámos mesmo numa das várias sessões distritais, o Congresso do Desporto, organizado pelo Governo de então, em 2006. A filosofia subjacente era similar à do agora périplo nacional: pensar a reforma do sistema desportivo e, portanto, em alguma medida, caminhar para uma nova lei de bases para o desporto. A nossa comunicação, que é pública, intitulou-se “A utilidade da borracha no sistema desportivo nacional”, onde se destacava a profunda divergência entre o legislado e o realmente aplicado, concluindo que, ao não se aplicar a lei, o melhor era de facto, apagá-la, evitando incoerências e factores condenatórios do valor das leis e da autoridade do Estado enquanto legislador.

3. Neste jornal, por três vezes, adiantámos a necessidade de rever a actual Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (24 de Setembro de 2021, 13 de Maio de 2022 e 6 de Janeiro de 2023). As nossas palavras não tiveram eco na altura e julgo que agora também não o vão alcançar, não obstante o surgir do périplo e do adiantar de uma data para o resultado.

4. Pensar uma nova lei de bases do desporto ou a revisão da actual, introduzindo alterações, não pode ser apenas mais uma operação de cosmética legislativa, caso em que é melhor não tocar no existente. É certo, todos o reconhecerão, que a referida lei se encontra desactualizada em face do desenvolvimento desportivo e de uma realidade prenhe de novas e bem complexas questões a merecer resposta de enquadramento geral numa lei de bases. Mas alterar o menu, por força dessas novidades não se tem por suficiente. Há que ir mais longe e colocar sobre a mesa o debate e a hipótese de alterar o modelo existente, tal como veio a suceder, recentemente, em Espanha, país de que somos amplamente tributários nestes domínios jus desportivos.

5. Quando surgiu a lei de 2007, pondo termo à vigência de uma lei quase nado morto (a Lei nº 30/2004), pouco ou nada se viu reflectido do debate e conclusões do Congresso do Desporto. Suspeitamos que o mesmo irá suceder com o périplo. A lei vigente, quanto a um dos pontos cardeais do sistema desportivo nacional – a relação entre o Estado e o associativismo desportivo e suas estruturas de cúpula, as federações desportivas – não mais fez do que projectar maior intervenção pública, como desenvolvendo o primeiro passo dado pela Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro, Lei de Bases do Sistema Desportivo.

Estamos em crer que esse relacionamento, marcado, como dissemos, por uma vasta intervenção pública, não vai desaparecer, não se optando por uma visão mais privada do desporto nacional, colocando o Estado e o seu aparelho legal e administrativo, numa posição de menor intervenção na organização e funcionamento das federações desportivas. Ora isso era, bem vistas as coisas, algo de verdadeiramente inovador, concedendo maior espaço de autonomia a essas entidades desportivas. Todavia, como no passado, não estamos esperançosos que tal venha a ocorrer em Abril de 2024, no texto a apresentar à Assembleia da República.

6. Portugal continuará a ser caracterizado por essa mancha pública e a questão estará apenas em saber, até que ponto pode ela ir mais longe. No fundo, vai-se baralhar para dar de novo.

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