Estágios ou não? Eis a questão

85% da classe dos advogados não tem condições para pagar os obrigatórios 950 euros para poder aceitar um estagiário – correndo o risco de este vir a ganhar mais do que o patrono.

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Uma questão a que nem Hamlet, quanto mais o Governo, sabe, neste momento, dar resposta. Com a nova Lei das Associações Públicas Profissionais (LAPP) que veio decretar a remuneração obrigatória dos estágios de acesso às profissões reguladas como a advocacia, quem pode responder com segurança "sim" a esta pergunta?

Certamente não os advogados, quando 85% da classe exerce a profissão em prática individual e, logo, não tem condições para pagar os obrigatórios 950 euros para poder aceitar um estagiário – correndo mesmo o risco de este vir a ganhar mais do que o seu patrono.

Tudo isto seria cómico se não fosse trágico: à boleia de uma falsa imposição comunitária que obrigaria o Estado Português a melhorar as condições de acesso à profissão e de concorrência no setor, o que o Governo vai conseguir é reduzir fatalmente a disponibilidade de estágios e deitar por terra a concretização de um princípio com o qual até estamos de acordo: a necessidade de remunerar estes estágios.

Admito que há muito que as ordens profissionais e, especificamente, a Ordem dos Advogados, deviam ter tomado a iniciativa de regular esta matéria, estipulando um valor mínimo de remuneração ou uma escala de valores dependendo da situação profissional do patrono. Mas o que agora o Governo vem impor é "passar do 8 ao 80", pondo em causa não apenas a formação dos advogados mas, no limite, o próprio acesso à profissão.

É que, a avançar esta medida e, sobretudo, sem o Estado garantir formas de apoio ao financiamento destes estágios – designadamente, para patronos que exercem em prática individual ou em pequenos escritórios – é "matar" o acesso à profissão.

Por um lado, vai haver cada vez menos patronos disponíveis para receber estagiários e, por outro, vai ser criada uma situação de discriminação inaceitável entre candidatos, com quem tem muito boas notas a entrar nas grandes sociedades (que são, até aqui, as que têm tido "músculo" financeiro para poder pagar e que iniciam o recrutamento ainda nas universidades) e quem não tem a ficar de fora.

E, pior, é vedada a possibilidade de o próprio estagiário escolher o tipo de estágio que pretende: numa grande sociedade de advogados ou num escritório em prática individual.

Para quem dizia propor esta legislação para melhorar o acesso e a concorrência na profissão, estamos conversados! Mas os riscos não acabam aqui: está em causa a qualidade da advocacia, na qual o estágio prático é parte essencial da formação. O Governo "mete tudo no mesmo saco", esquecendo a distinção básica que há entre um estágio de formação e um estágio de trabalho ou profissional.

No caso dos advogados, trata-se de um estágio de formação, pelo menos no seu início, em que ao curso de Direito – cada vez mais de banda larga, para que os alunos tenham contacto com muitas matérias – acresce uma parte prática essencial para que os futuros advogados se possam especializar. Desengane-se quem acha que se sai de uma faculdade de Direito preparado para ser juiz, procurador ou advogado.

Esta proposta do Governo revela um desconhecimento total do que está em causa num estágio de advocacia e da sua realidade atual. É falacioso presumir, como diz a lei, que o patrono vai beneficiar de “uma prestação de trabalho” que deve ser remunerada, porque a verdade é que um licenciado em Direito não vai ter atividades que o impliquem, pelo menos no início do estágio. Pelo contrário, é o patrono que vai investir tempo e recursos nesse processo – a ensiná-lo, a corrigir, a acompanhar, etc.

Outro resultado desta imposição é o que já está a acontecer com outras profissões reguladas em que os estagiários que não conseguem arranjar patronos que lhes paguem: estão a fingir que são remunerados e a fazer eles próprios descontos e a serem tributados em sede de IRS sobre aquilo que não recebem.

Por fim, ficam também em causa os direitos dos cidadãos como utilizadores dos serviços da advocacia, uma vez que esta legislação também abre a porta a que licenciados em Direito – mesmo a jeito da enorme "multidão" que não vai conseguir estágio – possam na mesma fazer consulta jurídica e passando Portugal a ter uma situação semelhante à do direito britânico em que há o “jurista” de gabinete e o advogado que vai à barra do tribunal.

Com isso “legaliza-se” também outro flagelo para o cidadão: o da procuradoria ilícita, deixando-o à mercê de um qualquer licenciado em Direito, sem prática ou formação qualificada, o poder aconselhar sobre matérias importantes da sua vida como a compra de uma casa ou a criação de um negócio.

Parece que, de tanto legislar, o Governo esqueceu o mais importante: as leis existem para servir bem as pessoas e não o contrário. Mas é isso que vai passar a acontecer com esta LAPP e suas implicações.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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