As nossas cidades odeiam bebés, cidadãos em cadeira de rodas, velhos e coxos

Não haver coragem de permitir que as cidades sejam vividas por TODOS os cidadãos, em nome de um património histórico mas destrutivo - a calçada portuguesa - acaba por ser, de facto, uma crueldade.

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A palavra “mobilidade” é uma palavra usada no nosso discurso político até à exaustão. Habitualmente, serve para falar de ciclovias e de transportes públicos.

Infelizmente, há uma mobilidade que tem sido menorizada pelos poderes públicos desde que me lembro. O andar a pé – ou com um carrinho de bebé – é uma tortura na generalidade das nossas cidades para o caso de já não sermos muito novos, andarmos de cadeiras de rodas ou com um problema nos joelhos.

Há mais de 20 anos, lembro-me de desejar que Lisboa tivesse o piso público de Zurique para poder empurrar o carrinho do meu então bebé – atravessar metade da rua da Junqueira até aos jardins de Belém era uma aventura. A coisa piorou quando, há coisa de dois anos, um joelho com problemas levou-me a andar na ciclovia sempre que podia. Na verdade, quase era preferível arriscar a ser atropelada por uma bicicleta (podia acontecer) a sofrer as dores de andar a pé com um joelho avariado nas ruas de Lisboa.

É óptimo ir retirando os automóveis da cidade e promover as bicicletas. Mas como é que se decidiu ignorar este tempo todo que os mais velhos (e outras pessoas com dificuldades) precisam de andar a pé e que quem usa cadeira de rodas também tem direito à cidade? Infelizmente, vamos ter ao mesmo: os velhos e as pessoas com deficiência não são, nunca foram, prioridades. Infelizmente, dispõem de poucos porta-vozes.

Isto não se passa só em Lisboa, mas em quase todas as cidades que conheço, independentemente de quem as tem governado. O “andar a pé” é uma prioridade de qualquer manual básico de saúde, mas está interdito pelos nossos fazedores de cidades a quem tenha qualquer dificuldade de movimentos.

Uma medida verdadeiramente revolucionária para a mobilidade era rebentar com a perigosíssima calçada à portuguesa que agora já é "património imaterial do país" e substituí-la por um material igual ao das ciclovias (enfim, com marcas diferenciadores rigorosas para não haver confusão). Aí, poderíamos andar pela cidade todos juntos, em segurança: pessoas com cadeiras de rodas, velhos, bebés nos carrinhos e coxos.

Um documento da Câmara de Lisboa de 2013 já identificava a calçada portuguesa como um dos maiores riscos para a mobilidade dos idosos da cidade e que nem sequer, com as óbvias excepções, tinha em regra geral “qualidade”.

O problema é que a calçada portuguesa é um dogma nacional. Questionar a sua perigosidade é logo recebido por um grupo de gente em estado de sítio, obviamente jovens robustos ou velhos que estão aí para as curvas e que têm mais capacidade de gritar do que quem tem dificuldade todos os dias em sair de casa.

A discussão é antiga. Quando a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou em 2014 o Plano de Acessibilidade Pedonal, que identificava a calçada portuguesa como um risco e defendia a remoção de alguma parte até 2017, gerou-se uma balbúrdia, um escândalo nacional – não foi tão grave como a da construção do Centro Cultural de Belém (que ia dar cabo dos Jerónimos) mas suficientemente altissonante para que, com a excepção do Saldanha, ninguém com problemas de mobilidade em Lisboa possa com segurança sair à rua.

O coordenador do plano de mobilidade, Pedro Homem de Gouveia, acabou a admitir que “os custos da remoção seriam incomportáveis”, mas que a calçada portuguesa criava “problemas a pessoas que também têm direito a andar na rua”. Isto é, os velhos, as pessoas que usam cadeiras de rodas, os coxos, os bebés no carrinho ou ao colo.

A actual Câmara de Lisboa está preocupada com “a promoção do exercício físico da população sénior, “pretende promover a melhoria da qualidade de vida, diminuindo o sedentarismo e criando hábitos de vida saudáveis”. O programa chama-se “Lisboa + 55” e inclui Tai-chi e Pilates, entre outras actividades, mas é omisso na questão do piso urbano que contribui actualmente para impossibilitar os “hábitos de vida saudáveis”.

O não haver coragem (no país todo, só falo mais de Lisboa porque conheço melhor) de permitir que as cidades sejam vividas por TODOS os cidadãos, em nome de um património histórico mas destrutivo, acaba por ser, de facto, uma crueldade.

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