Ostras em Oeiras: da húbris às reflexões jurídicas necessárias

O enquadramento legal dos chamados fundos de maneio sofreu nos últimos anos uma revisão que transformou este instrumento contabilístico num foco de abusos e de opacidade.

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O caso em que, no município de Oeiras, se utilizaram fundos de maneio para pagar almoços de trabalho de ostras, regados com Pêra Manca, branco, é absolutamente condenável, quer pela absoluta falta de parcimónia na gestão de dinheiros públicos quer pela húbris dos seus protagonistas – que de tão insólita ganhou contornos de piada nacional. Mas se há utilidade em trazer o caso a debate, ela está na reflexão jurídica que possibilita.

Para início de conversa, deveria ser claro que a legislação em vigor já estabelece (e bem) mecanismos de compensação do ónus de representatividade associado ao exercício de funções numa câmara municipal em regime de permanência ou ao exercício de alguns altos cargos dirigentes municipais, não sendo por esse motivo legítimo o recurso a fundos de maneio para cobrir os gastos associados a tal ónus. Esse mecanismo é o suplemento remuneratório para o pagamento de despesas de representação e, no caso, por exemplo, de um presidente de câmara, chega a 30% do seu salário.

No entanto, quase incólume no debate público tem passado o facto de o enquadramento legal dos chamados fundos de maneio ter sofrido, nos últimos anos, uma revisão que transformou este instrumento contabilístico num foco de abusos e de opacidade.

Concretamente o Plano Oficial de Contabilidade Pública, que vigorou até 2018, previa regras muito concretas sobre fundos de maneio que tinham o objetivo de permitir o controlo da sua utilização e obrigavam as câmaras municipais a aprovar um regulamento que, entre outras questões, fixasse regras sobre a natureza da despesa coberta pelo fundo.

Contudo estas exigências pura e simplesmente desapareceram com a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas (SNC-AP), que passou a integrar os fundos de maneio no âmbito dos fundos fixos e deixou de lhes impor “regras mínimas” sobre a matéria ou de prever a aprovação obrigatória de regulamentos. Para que se compreenda a dimensão do retrocesso: se até 2018 o quadro legal estabelecia que os fundos de maneio serviam para "o pagamento de pequenas despesas urgentes e inadiáveis", com o SNC-AP tal densificação legal mínima desapareceu e passou a estar na total discricionariedade das câmaras municipais, que assim conquistaram mais flexibilidade regulamentação destes fundos e uma liberdade quase total na identificação das despesas que neles podem ser incluídas.

Assim, se é verdade que atualmente alguns municípios, como os de Braga ou do Porto, exigem, na sua regulamentação, que nas despesas com refeições haja a identificação das razões de interesse público subjacentes à respetiva realização e respetivos participantes, não menos verdade é que a flexibilidade concedida pela legislação em vigor às câmaras municipais permite que em Oeiras e na maioria dos municípios não seja exigida tal densificação, sem que isso signifique uma ilegalidade.

Esta reflexão jurídica que o caso das ostras em Oeiras tornou oportuna, por um lado, deixa o alerta para que as câmaras municipais (e as suas oposições), em nome da prudência no uso de dinheiros públicos, assegurem uma melhor e mais densa regulamentação dos fundos de maneio. Por outro lado, lança um desafio para que se introduzam melhorias ao SNC-AP - que obriguem as câmaras municipais a aprovarem regulamentos autónomos sobre a matéria, prevejam mecanismos de transparência na sua utilização e exijam que as despesas com refeições sejam acompanhadas da identificação das razões de interesse público subjacentes à respetiva realização e das pessoas presentes – e para que se aprove uma lei reguladora do lobbying aplicável aos diversos níveis de poder, incluindo as câmaras municipais, e com mecanismos que melhor possibilitem escrutinar os encontros e reuniões de trabalho dos membros executivos municipais, como os que deram origem ao caso das ostras em Oeiras.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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