Racionalidade económica

É evidente que a lógica do crescimento económico como força motriz dos lucros não é compatível com a finitude de recursos do planeta e com os estragos ambientais que causa.

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Um dos pressupostos mais básicos da economia é o da racionalidade dos indivíduos enquanto agentes económicos. Estes, preconiza a hipótese, agem no sentido de ordenar as suas preferências de acordo com o menor custo. A nível social, pelo menos teoricamente, a racionalidade manifesta-se pela conciliação de interesses no sentido de alcançar o bem-estar comum.

A nível macroeconómico, a racionalidade é evocada para evitar problemas sistémicos como inflação, recessão, estagflação, colapso dos preços e lucros, que impedem a evolução sem constrangimentos dos mercados. A nível governamental, a generalizada prática neokeynesiana estabelece que os governos devem intervir racionalmente para controlar o emprego e aumentar o produto interno bruto (PIB). A racionalidade faz-se sentir também quando os governos favorecem a negociação em oposição ao confronto e às guerras e quando harmonizam a organização legal e social de modo a ter um desempenho mais lucrativo, no contexto de uma dada ordem económica internacional.

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Linha de montagem de um constyrutor automóvel no Brasil Paulo Whitaker / Reuters

Porém, subjacente à estruturação lógica das opções de natureza económica há, como apontou Daniel Kahneman, Prémio Nobel de Economia de 2002, opções intuitivas superficialmente racionais que frequentemente se mostram equivocadas e que são adotadas em detrimento de opções mais fecundas baseadas em decisões verdadeiramente racionais. É desta racionalidade mais profunda que hoje tanto necessitamos.

É evidente que a lógica do crescimento económico como força motriz dos lucros não é compatível com a finitude de recursos do planeta e com os estragos ambientais que causa. Mesmo a imprescindível transição para a "economia verde", com "empregos verdes", tão propalada por setores neoliberais nos Estados Unidos e na União Europeia, não dispensa uma redução do consumo, dado que não há tecnologia que não tenha impacto sobre o meio ambiente.

Efetivamente, décadas de capitalismo selvagem e de comunismo predatório levaram-nos ao Antropocénico e à globalização da economia de mercado que multiplicou pantagruelicamente o consumismo, transformando o planeta numa lixeira do efémero apetite dos consumidores. Os efeitos da crise climática resultante fazem-se sentir em todas as latitudes. O dano no Sistema Terrestre é tão profundo que brevemente será irreversível. A habitabilidade do planeta está em risco e com ela a vida de milhares de milhões de seres humanos e de milhões de espécies.

A globalização expôs cruamente os problemas que eram há muito conhecidos, mas que podiam ser escondidos em geografias locais ou distantes: profundas desigualdades sociais, miséria, epidemias, guerras, degradação ambiental, exploração generalizada. Hoje está tudo à vista. Estamos todos ligados em rede a uma problemática para a qual a racionalidade económica até agora utilizada é completamente inútil, para não dizer deletéria. A falaciosa lógica da necessidade de permitir que o bolo cresça antes de o dividir, que na verdade nunca funcionou, é a marca registada da alienação e da irracionalidade dos governos e das políticas. Mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, há desigualdades sociais gritantes, há crise na habitação, no emprego, há conflitos sociais de toda a espécie, desertificação das zonas rurais e uma resistência estrutural à imigração, uma potencial solução para o problema.

A regra de ouro do crescimento do PIB é vista pelo pensamento económico ortodoxo e pelos agentes políticos como sinal inequívoco de sucesso político. Mas hoje, após de séculos de acumulação de saber científico, económico, político e social, a racionalidade de que necessitamos é de outra ordem: alcançar o bem-estar generalizado e travar a destruição ambiental.

Hoje, sabem os especialistas, a questão está para além dos limites do crescimento. A questão é saber se as sociedades estão preparadas para tomar medidas para prosperar, por exemplo nas dimensões cultural, desportiva e intelectual, prescindindo do crescimento económico. Há que considerar que, depois da crise financeira de 2008, muitos autores têm defendido que a estagnação económica é a única fórmula realista para garantir a sustentabilidade de uma economia globalizada. A nível microeconómico, o decréscimo da produção parece ser a resposta adequada, porque implica o aumento dos preços e uma consequente diminuição do consumo.

Hoje, as sociedades mais desenvolvidas têm o dever ético de usar o potencial científico e a organização do tecido social para poupar recursos, diminuir o consumo, evitar a destruição de ecossistemas, generalizar a utilização de fontes renováveis de energia, redimensionar infraestruturas e garantir a sustentabilidade das condições ambientais e das instituições sociais. Devem simultaneamente transferir para as sociedades menos desenvolvidas o capital financeiro e científico para que estas melhorem as condições de vida das populações de forma justa e eficiente. Esta transformação deve fazer-se através de uma radical descarbonização das atividades económicas, uma consistente redução das horas de trabalho (tornando-o remoto quando possível), uma redução na produção e no prolongar da vida útil dos produtos colocados no mercado.

Estas transformações são essenciais para responder à urgência climática que já não pode ser resolvida através de medidas com efeitos a médio e longo prazo. Estas transformações libertarão também energias comunitárias para humanizar as cidades, permitirão que o trabalho rural recupere a dignidade e seja devidamente remunerado. As cidades e comunidades podem desenvolver-se promovendo práticas que reduzam a pegada carbónica, como por exemplo, adotando o transporte coletivo em detrimento do transporte individual, estimulando o debate de prioridades e o trabalho comunitário aquando da construção de estratégias para a adaptação e a mitigação dos efeitos das alterações climáticas. Medidas desta natureza, não só têm um efeito concreto na pegada carbónica, como estimulam hábitos de partilha de interesses e objetivos. Os governos devem ser os maiores interessados e os mais ativos arautos desta transformação ideológica.

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Unidade de processamento de lixo electrónico no Quénia DAI KUROKAWA /LUSA

A nova racionalidade económica deve privilegiar a distribuição equitativa dos recursos para evitar desequilíbrios e desperdícios, como forma de nos salvar da estupidificação pelo hiper consumismo, da padronização estéril de preferências e mentalidades, do empobrecimento das opções de vida e da degradação das liberdades e direitos. O património de riqueza e conhecimento que a humanidade acumulou ao longo de séculos é mais do que suficiente para que todos possam viver com dignidade; não podemos permitir que este direito esteja, como defende a racionalidade económica vigente, subordinado ao direito ao lucro de uns poucos que, via de regra, vivem completamente à margem das sociedades que os enriqueceram.

A nova racionalidade deve ser mobilizadora e incubadora de soluções para a diferença de opiniões e conflitos que são a matéria mais básica da vida, mas que não nos devem dilacerar. Só uma racionalidade completamente renovada permitirá que as próximas gerações tenham horizontes de vida com opções e esperança no futuro.

Num bem conhecido filme de ficção científica dos anos 1950, que reapareceu com uma roupagem contemporânea em 2008, a solução para travar a destruição de ecossistemas foi o feito tecnológico alienígena de travar todos as máquinas do planeta. A solução parece-me perfeita: há que parar a Terra para que mudemos o nosso comportamento coletivo. Sendo impossível parar todas as máquinas, não é demais exigir que produzam menos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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