Uma chamada sem tempo: o poder da escuta nas linhas de apoio de prevenção do suicídio

São as linhas de apoio que desempenham um papel importante na prevenção do suicídio, cujo dia mundial se celebra este domingo. O objectivo é “dar alguma luz à pouca que possa existir”.

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Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio celebra-se neste domingo KUBKOO/GETTY IMAGES
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“A nossa função é ouvir.” As chamadas que as linhas de apoio de prevenção do suicídio recebem podem demorar cinco minutos ou duas horas. O mais importante é garantir que quem liga se sente um pouco melhor do que no início da conversa. “É o tempo que eu quiser e que quem liga quiser”, começa por dizer Ana (nome fictício), voluntária na linha de apoio SOS Voz Amiga. Para muitos, “ter alguém do outro lado” com quem possam conversar e partilhar as preocupações é suficiente; para quem trabalha nas linhas de apoio, é gratificante, dizem Maria e Paula (nomes fictícios), voluntárias da Voades. No âmbito do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, que se celebra este domingo, Sónia Cunha, do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM, diz que é necessário estar atento aos sinais de alerta, que, na maioria das vezes, "não são grandemente visíveis".

“Sempre pensei: ‘Um dia vou fazer voluntariado.’ Até que um dia ouvi uma entrevista do presidente [da SOS Voz Amiga] e sei que me cativou”, conta Ana. Há cerca de três anos e meio decidiu candidatar-se à associação, na qual se mantém até hoje. Porque é que o faz? “Sou extremamente positiva e acho que, embora me emocione, consigo levar um bocadinho de leveza para o outro lado. Faz-me sentido.”

Paula juntou-se à equipa da Voades, outra linha de apoio de prevenção do suicídio, quando também estava a passar por uma fase “mais complicada”. “Se alguém liga é porque está em aflição. Só o facto de eu atender a pessoa e tentar escutá-la e apoiá-la” pode ajudar. E isso é “uma satisfação enorme”, explica. Em 2019, Maria tornou-se também voluntária na Voades, referindo que o que mais a motiva neste tipo de voluntariado é o facto de conseguir manter uma relação próxima com as pessoas. É “gratificante” e há um verdadeiro sentimento de missão concluída, diz.

Quando recebem um telefonema, as voluntárias não sabem quem está do outro lado ou quais as razões que levaram aquela pessoa a recorrer à linha de apoio. O objectivo é ir sempre procurando pequenos pontos que as ajudem a perceber o que preocupa a pessoa e como é que isso a faz sentir. É através desta abordagem que conseguem perceber que existem “pessoas que não saem de casa, que a higiene de casa não existe”, que não têm ninguém de confiança, entre outras coisas.

As chamadas não têm um tempo limitado. “É como se alguém quisesse partilhar uma conversa com um amigo, com o qual pode não se sentir à vontade, e liga [para a linha], explica Ana.

Na sua maioria, as chamadas são sobre “solidão na terceira idade e na juventude”, sendo que a segunda desperta especial preocupação em Maria. “Quando os jovens nos falam de solidão, a expressão que utilizam muito é ‘Eu não vejo a luz ao fundo do túnel, não sirvo para nada’”, conta.

É nestes momentos, como defende Paula, que este tipo de voluntariado se revela “cada vez mais necessário”: escutá-los, tentar percebê-los, dar-lhes apoio e mostrar-lhes que “podem ter um futuro brilhante”. A voluntária considera que a ansiedade e a solidão, que afectam muitos jovens, estão relacionadas com o facto de se sentirem perdidos, “porque não têm sentido de vida, não têm emprego”. Em 2022, a Associação Voades recebeu 5500 chamadas, das quais 7% eram sobre suicídio ou tentativa de suicídio.

Ana considera que o mais importante é conseguirem “dar alguma luz à pouca que possa existir”. Mas relembra que cada conversa é uma conversa. Umas são mais leves, outras mais pesadas.

"Se eu não estou bem, não posso ajudar os outros"

As chamadas nas quais as pessoas falam sobre a possibilidade de se suicidarem ou de tentativas de suicídio são as mais pesadas. “Umas contam que já o tentaram várias vezes, outras que já lhes passou pela cabeça mas que não tentaram”, continua Ana, explicando que nem sempre é fácil convencer a outra pessoa de que tudo ficará bem dali para a frente.

A voluntária relembra – sempre sem pormenorizar os casos – uma chamada com a qual ficou em sobressalto desde o início. “Se eu vejo que alguém está desesperado, alguém que me liga a dizer que já tomou não sei quantos comprimidos e eu não sei o que está a beber, o que é que penso? Deixa-me falar o máximo de tempo possível para tentar convencer [esta pessoa] a ligar para o SNS ou perceber se tem alguém de confiança por perto”, descreve.

Maria também teve uma experiência que a marcou particularmente. O telefone tocou por volta das 21h30 e, quando atendeu, a primeira coisa que ouviu foi: “Eu não sirvo para nada, não estou cá a fazer nada.” Durante a conversa, a pessoa confessou-lhe que tinha tendências suicidas e que já o tinha tentado fazer anteriormente. Depois de uma longa conversa, Maria pediu-lhe que voltasse a ligar, mas a resposta não foi a que esperava: “Não sei se consigo ligar mais porque não sei se vivo até amanhã.” Perante esta resposta, Maria viu-se impedida de desligar sem actuar (entrar em contacto com o 112). No dia seguinte, a pessoa em questão voltou a ligar a dizer que começaria a ser acompanhada.

Os casos mais difíceis são aqueles em que o telefone se desliga e não se sabe o que acontece. Há “pessoas que dizem que [se vão suicidar] e depois, se o telefone se desliga do outro lado, ficamos a pensar no que terá acontecido”, refere Ana. Sempre que a conversa assim o proporciona, a voluntária pergunta como é que as pessoas conseguem chegar às linhas de apoio. As respostas variam entre campanhas de sensibilização, a divulgação através dos meios de comunicação social ou uma pesquisa no Google por suicídio, que remete imediatamente para linhas de apoio. Só no ano passado, a SOS Voz Amiga recebeu cerca de 9100 chamadas, e 6,7% destas envolviam ideação suicida, segundo o presidente da associação, Francisco Paulino.

Embora os voluntários destas linhas de apoio possam aprender a gerir as emoções, isso “não significa que uma pessoa não chore, não ria e que, às vezes, não partilhe a emoção” de quem liga, conta Ana. É um verdadeiro misto de emoções: um sentimento de gratificação quando a pessoa acaba a chamada a sorrir e a dizer que se sente melhor; um sentimento de impotência quando o telefone se desliga e se pensa: “O que vai ser desta pessoa agora?”

A preparação começa momentos antes do início do turno. “Eu saio do trabalho e entro em casa […]. Aquele momento em que estou a atender, estou descansada, estou ligada ali”, explica Ana. Depois do turno, é importante aprender a desligar. “Não é um voluntariado fácil”, diz, acrescentando que tratar da própria saúde mental é uma “forma de se precaver e de estar bem” do ponto de vista emocional para ajudar os outros.

Na associação SOS Voz Amiga, existem reuniões semanais que visam não só formar os voluntários, mas também trabalhar os sentimentos daqueles que todos os dias atendem nas linhas de apoio. Para além deste trabalho em grupo, Sónia Cunha reforça a importância de se desenvolverem estratégias individuais para fazer um "processamento individual" da situação, avaliando os sentimentos e os pensamentos.

Não desvalorizar as emoções: a pessoa deve partilhar o que sente sem "sentir que está errada"

"Não podemos evitar todos os suicídios, mas em grande parte as situações podem ser prevenidas", refere a coordenadora do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise do INEM. Sónia Cunha chama a atenção para a importância de se estar atento aos sinais de alerta que podem sugerir que algo não está bem com determinada pessoa, ressalvando, no entanto, que "muitas vezes os sinais não são grandemente visíveis". Entre eles, temos pequenas mudanças de atitude relacionadas, por exemplo, com a adopção de um discurso mais negativo, a alteração no padrão de relação com os outros e a referência à morte.

Nestes casos, a coordenadora do CAPIC considera que é importante não desvalorizar o assunto e o que a outra pessoa está a sentir. "A primeira reacção que as pessoas têm é 'não vamos pensar nisso, não digas isso'. Esse é o primeiro erro", afirma, explicando que é preciso explorar a questão e tentar perceber como é que a pessoa se sente. Em 2022, o Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise recebeu 1916 chamadas nas quais as pessoas apresentavam comportamentos suicidários.

Sónia Cunha considera que há a ideia errada de que "se se abordar este tema se pode incentivar ou legitimar a pessoa que está a pensar em suicídio", uma vez que conversar sobre o assunto e fazer com que a outra pessoa se sinta confortável para exteriorizar os seus sentimentos ajuda a outra pessoa a retirar "carga emocional" aos seus pensamentos. É ainda importante "permitir que a pessoa partilhe sem julgamento, sem sentir que está errada ou que não deveria falar", bem como incentivar a pessoa a mostrar as suas emoções "mais intensas".

"Quem pensa em suicídio, na maioria das vezes, não procura a morte propriamente, mas a fuga à dor, ao sofrimento que está a sentir", e por isso é que permitir que a pessoa fale sobre isso é importante, relembra. Neste sentido, quando a intenção de o fazer começa a estar muito presente, torna-se ainda mais necessário procurar ajuda junto de um profissional de saúde. No ano passado, em 510 chamadas as pessoas revelaram ter intenções suicidas, em 104 o suicídio consumou-se e em 437 houve uma tentativa de o efectuar.

Este ano, o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio tem como mote "A saúde mental é um direito humano". A saúde mental é um tema ao qual se tem prestado cada vez mais atenção, sobretudo após a pandemia de covid-19, mas continua a ser, na maioria das vezes, "menos priorizada e menos valorizada". Sónia Cunha acredita que este mote pretende seguir um sentido de "valorização e de afirmação do ser humano como um todo e da saúde mental como essencial para a saúde e o bem-estar de cada um".

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