Salvar o cão

Lugar onde o filho o encontrava a chorar quando ele acordava a meio da noite sem perceber muito bem por que motivo se sentia mal.

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No dia seguinte, o Severo, ao sair da serração, com as mãos oleosas e as unhas pretas, com fato de macaco e um cigarro nos lábios, viu um grupo de homens a olhar para a barragem. Um cão tinha caído e não conseguia subir. Enquanto a assistência ensaiava alguns pesares, o cão, em desespero, tentava sair do lugar onde a morte aparentemente o sentenciara, o Severo, sem pensar duas vezes, sem a mínima hesitação, escorregou pela parede da barragem, pôs o cão às costas e, arriscando a a própria vida, salvou-o. A assistência hesitante, que antes dava o cão por perdido, acabou por fazer um ou outro gesto tíbio de quem quer ajudar, mas não chega a fazê-lo, largou um ou outro encómio, e aplaudiu o feito, não com galhardia mas quase como acto burocrático, de tão expectável, vindo de um homem como o Severo, reconhecidamente honesto, íntegro, trabalhador e gentil. A opinião era unânime, era um homem bondoso, e se era capaz de arriscar-se assim por um cão, imagine-se o que seria capaz de fazer por um ser humano. O Severo passou pelos elogios sem ser tocado por eles, era aquele tipo de pessoa que não se comove com o que pensam dele. Não precisava de aprovação. Quando lhe batiam nas costas e o abraçavam e lhe apertavam a mão, isso era apenas a corroboração das suas virtudes, que todos admiravam e invejavam. Ele não desejava nada disso, assim como um morango não deseja ser vermelho nem precisa de elogios para ser vermelho. É simplesmente a sua natureza.

E depois, chegando a casa, trazendo nas mãos restos de gestos heróicos, com as mesmas mãos bebeu uns copos de medronho, acto que resultaria na normalidade dos seus dias: pegar na mulher e atirá-la contra a parede, o que é que eu fiz, Severo, repetidas vezes, o que é que eu fiz, Severo, e depois, no meio da raiva, deixar-se dormir na sala. Lugar onde o filho o encontrava a chorar quando ele acordava a meio da noite sem perceber muito bem por que motivo se sentia mal.

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Fábrica de Criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta-feira. Ao sábado oiça os textos da semana em podcast, lido pelo autor. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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