A vida como cesta

As nossas vidas são muito mais do que as medalhas que ganhamos e os aplausos que recebemos. É importante lembrar que há outros caminhos igualmente válidos e essenciais.

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Numa sociedade viciada na narrativa heróica, é natural que se sobrevalorize o acto da conquista, de atingir a meta, a vitória. Fazemo-lo em todo o lado, seja nas redes sociais, nos círculos de amigos, na família e até nos diálogos que temos connosco. O importante é conseguir, seja o que for e a qualquer custo. Ir em frente. Nunca vacilar. Nunca desistir. Nunca perder. Ser positivo. Avançar, avançar, avançar. Ganhar, só ganhar. O importante é cultivar a ideia do vencedor, jamais a do vencido. Dos fracos não reza a História, não é verdade? Mas esta história não é assim tão linear e simplista.

A narrativa heróica tomou-nos de assalto e é difícil libertarmo-nos dela. Infiltrou-se no subconsciente colectivo do mundo dito ocidental, impondo-nos um ritmo desumanizado, próximo da máquina. Temos de ser sempre produtivos. E se não o somos, há um problema, ao ponto de nos penalizarmos ou de nos julgarem. Quantas vezes somos assolados pela síndrome do impostor?

Quantas vezes nos pressionamos para cumprir uma meta quando o nosso corpo nos pede para descansar? Quantas vezes nos comparamos com quem aparenta ter mais sucesso do que nós? E isto acontece desde os atletas de alta competição ao funcionário da empresa mais modesta. Fazemo-lo porque fomos educados na narrativa heróica, que, num sistema capitalista, nos impele a tornarmo-nos gurus, CEOs ou milionários.

Mas nem todos seremos empreendedores de sucesso ou líderes de unicórnios que geram fortunas. Nem queremos sê-lo. Muitos, a maioria, seremos como as outras pessoas do mundo, completamente banais, a viver a vida que nos é possível, uns mais resignados que outros. Mas também há quem recuse a ilusão do sonho capitalista, que nos disse que temos de empunhar uma espada e de ir à conquista do mundo, como fazemos desde o início da humanidade. Bom, não temos.

A Teoria da Cesta, da antropóloga Elizabeth Fisher, trouxe uma nova perspectiva à forma como nós, humanos, estamos no mundo desde os primórdios da nossa existência. Segundo ela, o primeiro objecto que teremos utilizado foi, não um instrumento de caça, como uma lança, mas uma cesta ou um saco, um objecto côncavo de transporte, para com ele podermos carregar e armazenar os alimentos que colhíamos na floresta. Esta teoria foi revisitada pela escritora Ursula K. Le Guin, que a aplicou à narrativa, entendendo o romance e o conto não tanto como uma forma de relatar a história de um herói, mas como uma cesta que abarca uma infinidade de histórias.

Isto traz-me para o momento presente, porque mais do que de heróis a empunhar lanças ou espadas ou espingardas, precisamos de pessoas que carreguem cestas com alimento. E o alimento, aqui, também tem um sentido figurado.

Não advogo que ser vitorioso é mau, pelo contrário. Mas o lugar que a narrativa heróica ocupa na sociedade merece questionamento, dada a pressão que exerce e o enviesamento que origina. Não raras vezes temos visto pessoas a recuar, a dizer que este modelo não lhes serve, que precisam de viver outras coisas e sair da corrida incessante para chegar a uma qualquer meta. Veja-se o exemplo da ginasta Simone Biles ou do actor Jim Carrey.

As nossas vidas são muito mais do que as medalhas que ganhamos e os aplausos que recebemos. Quando tudo nos leva para a idolatria aos heróis, para lhes seguirmos os passos, para nos tornarmos neles, é importante lembrar que há outros caminhos igualmente válidos e essenciais. Enquanto o herói anda pelo mundo a matar dragões, há quem fique na aldeia a cultivar a terra, a armazenar o alimento e a cuidar das novas gerações.

Essas outras histórias não obedecem a uma lógica linear, com um princípio, meio e fim, sem curvas ou desvios, aproximando-se mais da imagem da teia, da espiral ou do labirinto. Por isso, talvez esta ansiedade colectiva em que vivemos se atenue um pouco se mudarmos a percepção de sucesso na vida.

Em vez de só olharmos para os mamutes que matámos ou não, para as conquistas que alcançámos ou que perdemos, talvez seja altura de começarmos a olhar para o fundo da cesta que trazemos connosco desde que nascemos. E então talvez nos demos conta de que a vida também está nas bagas que fomos colhendo no caminho para sobreviver, nos mapas do território que fomos traçando por tentativa e erro, nas histórias que fomos vivendo e que agora contamos à lareira para iluminar a escuridão.

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