Mais Habitação: comentários sobre a proposta de lei nº 77/ XV

Da leitura da proposta “Mais Habitação”, fica a dúvida sobre o que o legislador pretende com o “clarificar e simplificar as normas relativas às operações urbanísticas de construção e edificação”.

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A despeito dos muitos estudos, programas e planos, o desordenamento do território vem a agravar-se desde há 60 anos, obedecendo às plantas e regulamentos publicados em Diário da República.

A proposta de lei “” dá conta de um administrativismo obscuro a ponto de eleger “como prioridade a simplificação da actividade administrativa através da contínua eliminação de licenças, autorizações e actos administrativos desnecessários, numa lógica de 'licenciamento zero'”.

A proposta de Lei “Mais Habitação” dá conta de um administrativismo obscuro a ponto de eleger “como prioridade a simplificação da actividade administrativa através da contínua eliminação de licenças, autorizações e actos administrativos desnecessários, numa lógica de 'licenciamento zero'”.

Mas, se é benéfico abolir as “barreiras excessivas”, é imperativo dispor de capacidade para a concepção de um planeamento territorial bem-sucedido.

Assim, qualquer simplificação que se venha a instituir terá sempre que valorizar o conhecimento e a arte do urbanismo, saberes que cumpre às instituições públicas guardar, desenvolver, aplicar e transmitir às novas gerações.

Neste sentido, é positivo que sejam abolidos os “procedimentos dispensáveis ou redundantes em matéria de: i) urbanismo; ii) ordenamento do território;” bem como aqueles que enfermam de irracionalidades e de exigências deslocadas aplicadas com o zelo perverso atrevido e abusivo que se propõem eliminar.

Ora, se há, na proposta de lei "Mais Habitação", “eliminações”, obviamente acertadas, há também outras que causam perplexidade.

Uma das perplexidades decorre do disposto na alínea g) do artigo 2.º onde se visa “Limitar e clarificar os poderes de cognição dos municípios nos procedimentos de controlo prévio aplicados às operações de loteamento”. Certamente que o legislador não tem como intenção promover o atraso mental, que é sinónimo de capacidade de cognição limitada, dos municípios, mas, de uma forma eufemística e infeliz, convenhamos, pretende eliminar as arbitrariedades a que se prestam os procedimentos de elaboração dos planos territoriais e as indeterminações que abundam nas leis e nos regulamentos.

Por outro lado, a proposta de lei não assume que as “operações de loteamento” são da estrita competência e responsabilidade do município e parece subentender que estas são da competência de particulares vítimas de excesso de “poderes de cognição dos municípios”.

Este equívoco é geral e foi infiltrado na lei em 2014 ao dispor que a urbanização “é uma prerrogativa que se adquire gradualmente”. Estes perversos mal-entendidos inquinam o sistema de planeamento urbanístico e as políticas de habitação, com efeitos devastadores na economia no sistema financeiro.

Na verdade, as operações de loteamento são da exclusiva competência e responsabilidade da Câmara Municipal que pode delegar, nunca transferir, parte dessas responsabilidades, num promotor privado, mediante garantias “on first demand”.

Não tem sentido esta “limitação dos poderes municipais” e chega a ter graça que se queira “limitar a cognição” o que, com bondade, se pode entender por limitar a margem de subjectividade nas leituras e interpretações de leis e regulamentos que primam pela indeterminação dos seus conteúdos e criam um doentio domínio de incertezas e de outros custos de contexto que o legislador, porventura e bem, quer combater.

Um melhor planeamento do território exige lógica e correspondência taxonómica na classificação do solo e bom desenho e arte nas novas urbanizações, o que implica, não a limitação dos “poderes de cognição”, mas antes o reforço da capacidade urbanística dos municípios para concertar e contratualizar a gestão das operações de loteamento, que são sempre da sua responsabilidade.

Só desta forma é possível regular a oferta e o preço do solo urbanizado. Daí que nunca seja demais sublinhar que a solução do problema da habitação começa na resposta à questão de como proceder na disponibilização de solo para a expansão urbana.

É nesse contexto que se controla o preço do solo através de equilíbrios informados sobre a economia do território a partir de planos imagem, com conteúdo arquitectónico, onde é perceptível a qualidade do plano.

Da leitura da proposta “Mais Habitação”, fica a dúvida sobre o que o legislador pensa e pretende com o “clarificar e simplificar as normas relativas às operações urbanísticas de construção e edificação”.

Clarifique-se, pois, o que distingue e separa os conceitos de direito de urbanizar e de direito de construir e edificar.

Sendo o município o responsável pelas operações de loteamento, devia ser ele o dono da obra nas empreitadas de infra-estruturação, para não haver lugar aos delicados problemas no acto de recepção das mesmas pela Câmara Municipal. Com as regras actuais, o promotor e o empreiteiro estão numa situação muito fragilizada e ingrata perante as vistorias dos serviços municipais. Tem pertinente sentido “alterar as regras relativas à recepção de obras de urbanização;” e justifica-se outra abordagem onde a lógica mais apropriada não é a de “simplificar os procedimentos de recepção de obras de urbanização e de loteamento;” mas transferir para a esfera do município a promoção das obras de urbanização o que elimina o acto de recepção e as garantias, as quais passam a corresponder ao financiamento da operação em tempo real através do município, para maior segurança de todas as partes.

No que respeita aos planos de pormenor, constatando a disfuncionalidade, na forma como a lei os formata, o legislador, em vez de os reformular e tornarinstrumentos úteis, com predicados estéticos, económicos e de conforto, desiste e opta por “Instituir um novo mecanismo simplificado de reclassificação do solo rústico em solo urbano, designadamente sem necessidade de plano de pormenor”.

Há, boas razões para se “instituir um procedimento único e ágil de alteração aos planos urbanísticos”, mas que sirva o propósito de elevar o seu mérito urbanístico e nunca para abdicar desse mérito.

Seria útil explicitar os motivos para “eliminar o acompanhamento das CCDR - Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional — nos procedimentos de aprovação e alteração dos planos de pormenor e de urbanização”. Essa explicitação contribuiria para suprir incapacidades e outras causas de insucesso e falta de qualidade destes planos. É acertado retirar as CCDR deste processo, mas esta medida deve ser complementada com dotar os municípios de urbanistas competentes, avaliados pela qualidade das suas obras.

Quanto à figura da “unidade de execução” esta surgiu em 2015 e teve como propósito possibilitar a promoção de operações urbanísticas sem a obrigatoriedade de enquadramento em plano de urbanização PU ou plano de pormenor PP devido à imprevisibilidade e morosidade destes processos.

Compreende-se o pragmatismo de “densificar o conteúdo das unidades de execução, por forma a que estas tenham o potencial de proporcionar a isenção de controlo prévio urbanístico", mas, convenhamos, há nesta medida uma capitulação, em que se assume a incapacidade do sistema de planeamento realizar um bom trabalho de concepção urbanística. Vem a propósito apelar à recuperação da figura clássica do plano geral de urbanização – PGU e ao plano de bairro como unidade de vizinhança.

Não augura nada de bom optar-se por facilitar as urbanizações avulsas, dispersas, sem suporte na disciplina urbanística.

Sobre a irracionalidade de regimes enganosos e absurdos que legitimam o desordenamento do território, nada se diz, não sendo ainda desta vez que se afrontam e desmontam esquemas que consomem milhões de euros e que inquinam todo o sistema de planeamento.

Traria valor a esta proposta de lei, que tem a virtude de, implicitamente, dar o alarme face aos perigos de incumprimentos no crédito hipotecário à habitação, promover a literacia económica e financeira sobre como estimar os valores do património imobiliário degradado e em estado de abandono. A pedagogia sobre como avaliar o sentido económico destes prédios sem destino e traze-los para o mercado, recorrendo à informação racional, demonstrada e publicitada, sem ameaças à propriedade privada com medidas coercivas, creio que daria bons e surpreendentes resultados.

Acresce interrogar o porquê de não haver referência a poderes operativos relevantes que a legislação vigente configura especificamente para a promoção e controlo da expansão urbana pelos municípios e pelo Governo. Disso é exemplo o artigo 2.º do Código das Expropriações: “1 - A regulamentação do encargo de mais-valia e a delimitação a que se refere o n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 2030, de 22 de Julho de 1948, cabem exclusivamente à assembleia municipal competente quando estejam em causa obras de urbanização".

Acrescento a necessidade de precisar o conceito de mais-valia no processo de urbanização e de não o confundir com os lucros de investimento em operações imobiliárias. Esta confusão foi habilmente embrulhada no pacote dos benefícios com recurso ao conceito janota da perequação compensatória onde se respeita o princípio da justa distribuição de custos e de benefícios e se descarta com elegância a questão das mais-valias tida, sem razão, como assunto transcendente e incómodo que não é de bom-tom trazer à colação. Haverá quem julgue tratar-se de preconceito, mas é mais provável ser falta de poder de cognição para perceber que os empresários que investem no imobiliário não estão interessados em mais-valias simples, mas em obter lucros, o que faz toda a diferença. E é nesta diferença que está a possibilidade de, facilmente, se dar solução ao problema da habitação, como o entendeu Duarte Pacheco, com a ressalva de este ter cometido o erro de tomar como valor de indemnização, em sede de expropriação, a capitalização do valor de rendimento agrícola e florestal dos prédios rústicos quando o justo valor de indemnização deveria corresponder ao valor de mercado, ou ao valor de reposição, acrescidos de, pelo menos, 15%.

A capacidade de planear requer a conjugação complexa de interesses, de vontades e de direitos, com ideias, criativas e prudentes, sobre a configuração do sistema urbano, da estrutura agrária e do regime florestal. É na equação integrada do pleno do território que se alicerça o sucesso de uma política de habitação e do urbanismo, lato sensu, para racionalizar as redes onde se apoia o povoamento, as actividades económicas e a salvaguarda dos recursos naturais.

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